01 janeiro 2014

ILHA

Plantas engruvinhadas chegaram à margem. Como uma ilha vaga tocada pelo vento. Decepadas de algum lugar por facões certeiros e cruéis. Um pouco convincente vento leste. Vento suficiente para fazer a ilha errar pela lagoa. Pouco suficiente para mantê-la coesa em sua deriva. Sem bússola nem norte. Uma ilha na lagoa na ilha no mar. Uma ilha ao quadrado, portanto. Uma ilha vaga em uma ilha que dizem terem vagado desde Açores. Vaga ilha. Uma ilha que, breve, perecerá sobre um vento mais atroz, como este que se insinua desde o sul. Que perecerá sob os pés de crianças peraltas que surgirão, como por mágica, apesar dos protestos dos pais. Pais que não levantarão a bunda de suas cadeiras de praia ao lado de isopores recheados. Recheados de delícias, como cervejas, refrigerantes e galinhas com farofa. Isopores recheados de galinhas recheadas com farofa. Repetição doméstica da ilha da ilha a se estraçalhar pelos pés infantes, ao som de para com isto, menino! Dito com a boca espirrando a farofa das galinhas. Estas estraçalhadas pelas mãos engorduradas de habilidosas e gordas mães. Porém, enquanto isto não se concretiza, segue a ilha a sua natureza quadrática, para regozijo de escritores e engenheiros. Lagoa da Conceição, 2014, dia 1.

UM BARCO

Um barco. Um barco é um bom local para se começar uma história. Um barco encalhado. Na sua lenta e melancólica morte. Um barco naufragado. Reciclando-se sereno em corais. Um barco a navegar. Desafiando a natureza das coisas ele próprio. Um bom local para se começar uma história. Sobre as águas. Um barco que é a sua própria nação. Ilha errante a ferir aquele universo hostil e imperscrutável. Aquele país de monstros gigantes. Serpentes cruéis, polvos que dilacerem baleias. País também dos peixes, dos botos e das sereias. Sim, um barco é um local para se começar uma história. Uma história de seus habitantes. De pescadores, corsários e navegantes, fugitivos, náufragos e guerreiros. Homens que nasceram jogados ao mar num batismo atávico. Homens que morreram jogados ao mar, na pequenez de seu corpo abandonado à deriva. Homens que viveram sobre as águas, crispada a pele em sal e sol. Um bom local para começar uma história. Lagoa da Conceição, dez’13

A JANELA

Acordei numa cama duma enfermaria do velho hospital. Não conseguia engolir e tinha muita sede. Também mal conseguia falar e, mesmo que conseguisse, não conseguia entender direito o que as enfermeiras, todas claras e de baixa estatura, falavam naquela língua rapidinha e cantada difícil de entender. Eu tinha um curativo no pescoço e aquilo explicava o meu estado geral. Uma cirurgia delicada, risco de vida e coisas que eu não compreenderia mesmo que entendesse. As drogas para a dor que me administravam no soro, gotejando naquele tubinho que terminava em algo espetado sob um esparadrapo, faziam com que eu não entendesse muito bem o que estava acontecendo. Não sabia quantos dias eu estava ali, muito menos quantos dias eu permaneceria naquele estado. Havia uma janela sobre a minha cama. Aliás, algo que, no início, me incomodava, mas que fui admirando cada vez mais. O que me mantinha numa nesga de lucidez era aquela janela sobre o leito. Não conseguia ver nada além do céu, mas era um céu azul. Eu fechava os olhos e, quando os abria, o céu se apresentava negro e pontilhado de estrelas. Ela que me conectava com a vida. Eu sabia que havia passado mais um dia, embora não os contasse. Sabia que havia chuva ou frio. Vento ou um amanhecer luminoso. A sede me afligia, mas aquelas pequenas enfermeiras estavam ali apenas para insistir que eu não poderia estar sentido, pois estava tomando soro. Soro com sei um lá o que, que me fazia misturar os sonhos com a realidade. Aliás, passei a desconfiar até das paisagens celestes da janela. Haveria mesmo sol? Chuva? Neve? Como assim neve? Não seria possível neve naquelas paragens. Ou seria? O parapeito da janela era alto e, um dia, subi na cama e espiei para baixo. Ali estava o quintal da igreja da cidade onde nasci. O pomar por onde os padres caminhavam rezando ou trabalhando. Até o velho Frei Antônio com seus trajes de capuchinho e chapéu de palha, cuidando das árvores. Levantou a cabeça e sorriu, entre sua longa barba, me alcançando uma maçã. Mas este quintal eu espiava sobre o muro no tempo em que era criança. E já sou um homem maduro. Não estava certo. Quando era noite e eu não estava a passear por campos ou praias distantes no tempo ou no espaço, reconhecia outros pacientes da enfermaria, apenas pelos sons. Um gemia, outro gritava baixinho e outro ainda apenas roncava. Não conseguia os ver, pois não tinha forças para sequer me erguer na cama. Então o Frei Antônio só poderia ter sido sonho, eu concluía na minha esparsa lucidez. Ele já era velho na minha infância. Mas a janela. O homem que gemia, aliás, estava a cada noite mais longe. Mais longe até que sossegou. Teria morrido? Teria empurrado sua cama, cada noite um pouquinho, até terminar fugindo de lá? Mas isto também devia ter sido sonho. A lua me visitou numa noite. Uma lua clara e quase cheia. E assim se fez por várias noites, fora as que nevavam ou chovia forte, ou fraco, ou apareciam aqueles gatos me espiando. Gatos poderiam espiar na janela. Era da natureza deles serem curiosos. E ágeis. Gatos sim. O Frei Antônio não. Estes exercícios me faziam manter a lucidez. E a sede. A boca seca. Uma noite uma mulher me trouxe uma gaze molhada e me esfregou a boca. Quis agradecer, mas não conseguia falar direito. Ela não era uma das enfermeiras. Não via direito seu rosto, pois estava escuro. Mas suas roupas não brilhavam alvas como daquelas diligentes criaturinhas. Outras noites ela veio. Mas não havia lua. Nem gatos. Outro dia foi o Frei Antônio que me molhou a boca. Mas era sonho. Tinha quase certeza. Numa noite, porém, ela não apareceu mais. Nem ela nem o homem que roncava. Ela talvez fosse a acompanhante daquele homem. Assim meus companheiros se iam. Não sei para onde. Nunca saberei. As enfermeiras não falavam. Só trocavam os frascos de soro e insistiam que eu não tinha sede. Pedi, mais com gestos que com a voz, uma gaze úmida para meus lábios. A moça sorriu. Se foi e não me trouxe gaze nenhuma. A janela era minha fonte de lucidez. Todo o dia, entre as cochiladas que eu dava. Amanhecia, o dia se firmava, depois entardecia e a noite assumia seu turno. Seguiam noites de chuva, dias claros, dias sombrios, noites estreladas, os gatos e, eventualmente, a lua me brindava com seu clarão branco iluminando meus lençóis. Ficava pensando no pomar do Frei Antônio, embaixo da janela, sob o luar... as sombras das árvores contrastando com aquela luminosidade quase irreal... Às vezes acordava com a claridade do dia nos meus olhos. Às vezes o frio da nevasca me encolhia sob as cobertas. Comecei a perceber todas estas nuances daquela minha vida sobre o leito da enfermaria, apesar da sede constante. Uma sede que estava se arraigando na minha garganta, se enraizando como uma planta que se fixa tanto na terra de um vaso que, ao ser virado, saía compactada num bloco só. Bem como o Frei Antônio me mostrou outro dia, enquanto transplantava uma muda de laranjeira para o pomar ali embaixo. A sede começava a fazer parte de mim, como a dor na garganta, a falta de palavras e as enfermeiras miúdas e ligeiras com seus frascos de soro. E a janela que se abria para o mundo. - Frei! Frei! – corri gritando em sua direção. - Que foi, menino? - Sonhei que estava doente num hospital! - Mesmo? O que tu tinhas? - Não sei, mas estava com muita sede. - Então vai logo até ali na torneira tomar água. menino! Floripa, abril’12

08 junho 2010

TRINTA-RÉIS

Hoje o dia é dos trinta-réis. Por que não sei. Bate um vento forte de sudeste e, há pouco, o sol cedeu lugar para nuvens densas.

Os trinta-réis são um tanto esquecidos por nós. Talvez por seu nome prosaico – dizem que onomatopéico, como o quero-quero e o bem-te-vi. Talvez por ser algo como o primo pobre das aves marinhas daqui. Os biguás e suas esquadrilhas, as barulhentas e desorganizadas gaivotas e mesmo as distantes fragatas, que parecem nunca descer dos céus, são bem mais populares que estas pequenas e acrobáticas aves.

Entretanto, hoje, as gaivotas estão ao longe e os esporádicos biguás passam, em sua formação, também distantes. As fragatas nem se vê. Os trinta-réis, portanto, dominam os céus. Voam atentos com o bico formando quase que um ângulo reto com o corpo, vasculhando a superfície do mar. Chegam a parar contra o vento procurando peixinhos. Num instante, estolam o vôo e mergulham certeiros, saindo da água rapidamente com sua presa no bico.

Dezenas destes pássaros executam manobras semelhantes, exceto um casal que permanece sobre uma pedra. Esporadicamente um alça vôo para se alimentar, mas sempre um deles permanece. Devem estar nidificando. De onde estou não é possível ver se há um ninho mesmo ali, mas a atitude do casal é bem típica.

Ao longe, o Tabuleiro reina imponente banhado ainda de sol. Aqui o casal de trinta-réis permanece na pedra, olhando para o vento que escabela na calçada as pessoas e os jerivás.

04 junho 2010

DIA MUNDIAL DO MEIO AMBIENTE

“A terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. Isto sabemos: todos as coisas estão ligadas. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo. “ Estas linhas foram escritas em 1854. E não foi escrito por nenhum apologista da sustentabilidade, mas por um índio. Este texto foi extraído da carta que o cacique Seatle mandou para o presidente dos Estados Unidos comentando o fato do governo daquele país querer comprar as terras de sua tribo. As terras que restaram.

Como estamos no passado, avançaremos mais de um século, até 1972, quando, na Conferência de Estocolmo, a ONU estipulou que o cinco de junho passaria a ser o Dia Mundial do Meio Ambiente. Quase quarenta anos depois, estamos aqui em São José sem ter o que comemorar. Tínhamos todo o nosso município coberto pela Mata Atlântica. Hoje ainda temos 26%. É pouco? Se formos comparar com outros municípios, ainda é bastante. Por um lado, temos Santo Amaro da Imperatriz com 68%, por outro, Capivari de Baixo atingiu um ponto singular, 0%. No ritmo que estamos, breve São José não terá um único garapuvu para contar a história.
Estamos aqui sem ter o que comemorar. Nossas florestas estão se degradando rapidamente na mão do homem que não pensa em seus filhos, que apenas pensa em si mesmo. Sim, porque estamos tomando um “empréstimo” do futuro. De nossos filhos, de nossos netos. O que destruímos agora fará falta amanhã. Nossos rios não passam de esgoto a céu aberto. Alguém, parado no ar condicionado de seu carro, esperando o sinaleiro abrir ao lado do Rio Araújo, abriu a janela e olhou o rio? Sentiu o cheiro? Há quantos anos a Terra abriga a vida? Milhões de anos. Há vinte anos, o Rio Araújo era vivo. Os mais antigos pescavam bagres, carás, lambaris em suas águas. Abra a janela do seu carro ao lado do Rio Araújo e olhe para ele.
São José é um município que fica na beira do mar. Quantos de nós se lembram deste simples fato? Se olharmos para o monumento aos açorianos na praça do centro da cidade, vemos que eles chegaram do mar e ali levantaram a freguesia de São José da Terra Firme. E na freguesia estamos hoje de costas para o mar. Ele só nos serve para que joguemos nossos dejetos, como se fosse um grande “sumidouro”.
Cinco de junho é o Dia Mundial do Meio Ambiente e não temos aqui nada para comemorar. Conclamo todos a fazer algo, um pequeno gesto, um movimento singelo na recuperação de nossos recursos naturais. Seja não jogando o esgoto de sua casa na rede pluvial, seja juntando um pedaço de plástico do chão, seja separando o lixo, seja reciclando o óleo da cozinha. Se todos nós fizermos algo, por menor que seja, teremos duzentas mil ações em prol do meio ambiente todos os dias, todas as horas e, no ano que vem, teremos sim o que comemorar.

30 maio 2010

RESSACA NA ARMAÇÃO

Fui instigado por um amigo a pensar um pouco e responder sobre o que fazer. Um caso bem concreto, a Ressaca na Praia da Armação, que, até agora, não se sabe quanta culpa o aquecimento global tem e quanto é de um fenômeno natural presente em praias compostas por areias ao sabor do mar e do vento, portanto móveis.

Não nasci aqui e, portanto, não acompanhei esta ilha desde os anos 50. Mas comecei a freqüentar estas plagas a partir de 73, quando cruzei a Hercílio Luz com dois amigos num flamante Passat e fomos até o norte da ilha. Até uma colônia de pescadores chamada Ingleses do Rio Vermelho. Havia a Festa da Tainha e fomos extremamente bem recebidos, estranhos que éramos numa comunidade de pescadores. Inclusive ficamos bem mais tempo do que planejado, acampados numa praia quase deserta chamada Santinho. A partir daí eu me apaixonei pela ilha e comecei a freqüentá-la. Entretanto, só consegui vir de muda para cá quase trinta anos depois. Mas cá estou.

Me lembro que a Praia da Armação tinha uma faixa de areia bem extensa e que ela, aos poucos, foi sendo tomada pelo mar. Isto é um fenômeno natural. Porém, mesmo com este avanço lento e constante, o homem teve sua influência na aceleração do fenômeno.

Conversando com pescadores, fiquei sabendo que o fechamento da barra do Rio Sangradouro para o lado da Armação, mudou a praia. O objetivo foi preservar a Armação livre da poluição do Rio. Ou seja, em vez de impedir que ele fosse poluído por esgoto humano no seu pequeno trajeto entre a Lagoa do Peri e o mar, foi mais prático desviá-lo. Mais uma vez varreram o pó para baixo do tapete.

Ele me falou que a praia sofreu com isto, tendo em vista a ação do vento leste, a lestada. Do mesmo modo, conforme o vento, os próprios pescadores passaram a ser obrigados a retirar seus barcos da Armação, levando-os até a Ilha do Campeche, o que significa sempre despesas extras, além de períodos fora de casa, pois, levando os barcos para lá, não têm como voltar, até mudar o vento.

Não entendo muito disto, pois me falta conhecimento científico sobre esta ação dos ventos e do mar, mas estou relatando o que me contaram. Ou seja, houve uma ação humana ali. Os pescadores pedem ou um molhe longo na foz do rio ou que se retirem aquelas pedras de lá.

Então aí vai a proposta que faria. Que, antes de mais nada, se escute quem tem conhecimento disto, seja por viver a vida inteira ali, seja por ter conhecimento científico obtido nos bancos da UFSC ou da UDESC ou onde for.

Resolverá jogar pedras na praia? Para mim é uma situação emergencial. Como as crianças na praia a construir um murinho para proteger o castelo de areia da ação das ondas que insistem em subir. Algo paliativo apenas, mas que não conterá o mar. Tem a proposta de dragar o fundo do mar naquele local, onde há um depósito de areia e jogá-la na praia, reconstruindo-a. Seria acelerar um movimento que o próprio mar faz ao longo dos anos. Tira a areia daqui, joga ali. É algo caro, mas que resolveria, com manutenção periódica, a situação da Armação.

Acontece que a vida construída sobre a areia da praia, se dá de modo precário. Ranchos e construções simples, que podem ser retiradas e erguidas em outros locais ou mesmo perdidas sem muito prejuízo. Assim deveria ser. Só que se construiram cidades, com belas e dispendiosas casas, em locais impróprios para tal. O mesmo que está acontecendo também na Barra da Lagoa e em Canasvieiras. Como acontece na Cidade do México, construída sobre um lago, em New Orleans, no caminho dos furacões, no Baú, no Morro do Bumba e tantos outros locais. Entretanto, a responsabilidade seria dos órgãos públicos que, no lugar que cobrar IPTU, levar água, luz, arruamento até lá, precisariam estar preparados, com base no conhecimento dos terrenos envolvidos, e dizer não, naquele local não pode. Mas a sanha arrecadatória é mais forte que o bom senso.

Temos que ter uma ação preventiva e não apenas remover os flagelados depois do flagelo acontecer e decretar estado de emergência.

Em que outros locais isto acontecerá? Quando? Que ação será tomada? E nem cheguei a falar no aquecimento global.

16 maio 2010

A ESPERA

Não tem vento nem sol. O céu fechado também não prenuncia a chuva. O mar, exceto por uma leve brisa vinda do sul, parece quase um espelho, onde as pedras - as áridas pedras - se refletem femininas. Se miram e se banham as bruxas do Itaguaçú.
As gaivotas reinam neste dia lento de outono. Algumas sobre as pedras e outras na água não fazem nada. Um casal destas aves faz acrobacias num vôo sincronizado rente à água, à areia, às pedras. Somem para oeste, onde um bando de trinta-réis descansam sobre uma pedra e uma dupla de pescadores tarrafeiam num caíque.
Tudo se passando muito lento, como se a tarde cinza segurasse os ponteiros do relógio de Saturno, acorrentando o tempo.
Todos esperam sem pressa. Esperam que o tempo passe. Esperam que o vento mude. Esperam na praia. Esperam nos barcos. Esperam cosendo as redes. Esperam lubrificando as máquinas. Esperam nos botecos. Esperam tomando pinga. Esperam jogando dominó.
Todos esperam que o tempo arraste suas correntes e que o vento mude. Esperam que o vento trague lá do sul as flechas de prata e de vida que encherão as redes, que moverão os braços, que pesarão nos barcos, que forçarão as máquinas.
Esperam as tainhas que abrirão o dia, que esquentarão o sol, que romperão as cadeias do tempo.

02 maio 2010

ORGULHO NACIONAL

Andando por Buenos Aires, há alguns dias, vi um posto Petrobras. Assim, sem o acento no “brás” mesmo. Mas, apesar do sumiço do acento obrigatório nas palavras com a última sílaba tônica, conforme o vernáculo, não se lê “petrôbras”, não. A justificativa foi a internacionalização da marca, já que em diversos países a acentuação é desconhecida. Justificativa que a Telefónica não compartilha, pois mantém o seu acento espanhol em qualquer país. E parece até que se orgulha disto.

Que seja, não é sobre isto que quero falar. Embora seja sobre orgulho. E sobre aquele posto em Buenos Aires com o “BR” em verde e amarelo. Poderia eu, ali mesmo, inflar meu peito com orgulho patriótico. Afinal, a Petrobras, independente dos acentos, é uma das cem marcas com mais valor no mundo inteiro. E continua genuinamente brasileira, remetendo-nos todos ao episódio do “petróleo é nosso” e outras afirmações da identidade nacional.

Mas o que me veio à mente, em vez de bandeiras brasileiras flamulando nos céus do planeta, foi uma propaganda que está sendo veiculada na televisão. Nela, um cachorrinho olha pela vitrine de uma pet-shop (eba, orgulho nacional) onde ele está exposto para venda. O close nos olhinhos pidões, quando ele vê uma pessoa passar, são tão enfáticos como a acentuação no nosso léxico. Expressam o desejo de pertencer àquela pessoa, uma jovem e bela mulher que passa distraída na rua.

Ela segue seu caminho, mas seus olhos, fixam-se em um homem, também jovem e bem apessoado, claro. O close, enfatizando seu olhar, repete o do cão. E, da mesma maneira, o homem não retribui, pois seus olhos pidões chegam até um carro na outra vitrine. O close nos olhos marca a cena.

Como se pode ter orgulho? Nada mais machista que esta propaganda da Petrobras. Algo que até poderia gerar uma interpelação do Conar, do Ministério Público e mesmo de qualquer mulher que se sinta ofendida em ser comparada com um cachorro em seus desejos, acentuados nesta peça publicitária.

Mas foram atingidos seus objetivos, pois esta propaganda me veio à cabeça em Buenos Aires, antes de qualquer rasgo patriótico. Realmente, a agência conseguiu explorar muito boa esta ligação sutil entre os desejos de um cão, uma mulher, um homem e um carro, embora seja difícil sentir orgulho de uma empresa que permite a veiculação de sua marca numa propaganda com esta conotação. Mesmo sendo uma das cem maiores marcas do mundo.

A SUSTENTÁVEL SUSTENTABILIDADE

Nestes novos tempos, onde sustentabilidade virou um chavão vazio, se vê casos completamente impensados por este mundo cada vez mais esquizofrênico. Parece que qualquer coisa pode ser dita, qualquer palavra pode ter qualquer significado. Afinal, qualquer um acredita.

Num caderno sobre sustentabilidade, que saiu dia destes na Zero Hora, grande jornal de Porto Alegre, a principal matéria era sobre um sapatinho sustentável de couro – que só não sustentou a vida do coitado do boi. Mas na capa do caderno vemos no topo, em destaque, o patrocínio de duas empresas. Uma contribuição financeira para o caderno foi da CEEE, empresa de distribuição de energia elétrica. Pode-se perguntar o que há de ecológico nisto, mas até pode ser. Sejamos complacentes.

Mas surge então o maior patrocinador, com direito à toda a contracapa do caderno. E a empresa é ninguém menos que a Souza Cruz. Sim, a Souza Cruz que, em sua página devidamente verde, afirma ter 107 anos de sustentabilidade. Mais de um século! É sustentável avant la lettre. Parabéns à esta gigante da saúde e do meio ambiente. E o que esta sustentável empresa industrializa? Três chances, cara-pálida. Não sabe? Chuta.

Errou. Há 107 anos a sustentável Souza Cruz fabrica cigarros. Sim, cigarros de tabaco. Aqueles que tem doses cavalares de nicotina. Aqueles que mataram meu tio de modo horrível. Que certamente levou algum parente ou amigo do leitor, que caiu nas garras do tabaco, viciou-se em nicotina e fumou até morrer. Sustentável. Completamente sustentável. A Souza Cruz fornece, com o beneplácito de todos os governos do ocidente, uma droga pesada que causa dependência química. Um negócio que é, obviamente, sustentável.

As pesquisas mostram que a nicotina causa mais dependência que a própria cocaína, tão combatida nos dias de hoje, só perdendo para a heroína. Estas duas banidas dos círculos legais. Mas pergunte aos traficantes se seus negócios não são altamente sustentáveis para seus bolsos ao passar do tempo?

Parabéns para a Souza Cruz pelos seus 107 anos de negócios sustentáveis para si e para as UTIs oncológicas.

Parabéns também para a Zero Hora por ter a sensibilidade de buscar o sustento de seu caderno ecológico na Souza Cruz.

E parabéns para todos nós que sustentamos isto tudo, como diria o Gonzaguinha, com um sorriso nos lábios.

10 abril 2010

BUMBA MEU MORRO

BUMBA MEU MORRO

O Bumba Meu Morro é um folguedo popular, claro que de origem portuguesa, que se faz presente no litoral brasileiro. Os personagens são o Povo Antigo, o Povo da Comunidade, os Reizinhos, o Diabo e S. Pedro. Sendo de origem lusitana, tanto a realeza como a influência cristã estão presentes.

O folguedo é de grande monta, demandando toda uma estrutura grandiosa e burlesca. Podemos até convidar o Zé Celso para a direção cênica, o Hélio Oiticica para o figurino e o Tom Zé para a trilha sonora. A ideia é transformar o Bumba Meu Morro num evento cultural inesquecível.

Num pequeno resumo, o Povo Antigo, que vestirá parangolés representando a moda de 35 anos atrás, será composto por 350 mil pessoas. Elas, em fila indiana, depositarão saquinhos de supermercado com um conteúdo de meio quilo cada, 365 vezes, simbolizando um saquinho por dia. O que se repetirá 16 vezes, alegoricamente indicando os anos do período antigo. Não será posto qualquer tipo de restrição quanto ao conteúdo dos saquinhos, podendo ser restos de comida, latas de cerveja, embalagens plásticas, papel higiênico, modess, preservativos, papelão, metais, etc.

Esta parte do espetáculo deixará mais de 1 bilhão de quilos numa pequena e fofa montanha que vai sendo erguida no centro do evento, simbolizando o substrato mesmo do Bumba Meu Morro.

No momento em que o Povo Antigo sai de cena, começa a aparecer, lentamente, o Povo da Comunidade, vestido de andrajos coloridos que, certamente, formarão parangolés lidíssimos. Este povo chegará lentamente, 15 vezes, representando a passagem dos anos, chegando até a 600 famílias formando o Povo da Comunidade. A trilha sonora tende ao burlesco.

Durante este acontecimento, também por 15 vezes, representando os anos que se passaram desde o fim da ação do Povo Antigo entram os Reizinhos, vestidos com fraques de políticos, prefeitos, governadores, assessores, diretores de repartições e burocratas. Eles levarão para a montanha material de construção, fios elétricos, telefones, canos de água, classes escolares, camas de enfermaria e toda a sorte de material, simbolizando a infraestrutura necessária para o Povo da Comunidade. Este, por sua vez, vai, lentamente, construindo suas casinhas, suas lojinhas e tudo o mais. Os Reizinhos dançam, revoando suas vestes, enquanto o Povo da Comunidade move-se num lento trabalhar, movendo-se como engrenagens de uma máquina.

Na última cena, aparece o Diabo que enfia seu tridente incandescente na água e, lentamente a vai esquentando, indicando o aquecimento de décadas. A água emite cada vez mais vapor, simbolizando o ciclo das águas. Neste momento, surge S. Pedro, que reúne todo aquele vapor do ar e joga sobre a montanha. Joga num único instante, 9 milhões de litros de chuva por aquela área. A música torna-se grandiosa com esta intervenção do sobrenatural.

O Diabo liga uma enorme batedeira com uma superfície de 30 mil metros quadrados contendo o bilhão de quilos de lixo misturado com as 600 famílias numa grande massa de bolo. Leva a massa ao forno e serve com cobertura de glacê e chocolate granulado.

Baixa o pano. A plateia aplaude, pede bis e o ibope sobe.

Não sei se isto tudo eu sonhei ou vi na tevê. Mas aconteceu depois de eu saber de um único glaciar lá da Terra do Fogo. Em cinco anos ele encolheu 30 metros em profundidade de gelo. Um glaciar de cerca de 60 metros de altura e 500 metros de largura. Isto chutando por baixo. Este cálculo, feito assim nas coxas, dá algo como 900 mil metros cúbicos de água derretida, transformada em fluido sobre a Terra. Continuando a calcular, dá algo como 500 mil litros de água liquefeita por dia. Seriam suficientes apenas 18 dias de derretimento daquele único glaciar para termos água suficiente para dissolver todo o Morro do Baú.

Pode ser que uma coisa não tenha nada a ver com a outra, mas me deixou com uma pontinha de preocupação. Não tive vontade de aplaudir. Nem pedir bis.

06 abril 2010

SOPRA O VENTO

Sopra o vento desde o sul. E encrespa o mar. A fúria do mar da baía agora me parece pueril. Encrespado pelo vento sul. O vento que vem lá de onde os mares se encontram. Lá onde o vento é o paradoxal oeste.

Lá da terra dos pingüins. Dos mares dos pingüins. Pingüins que subirão por estas correntes e aqui que não aportem, de preferência. E se aportarem fracos e extenuados, que tenham nossos cuidados e possam na primavera voltar para o clima movediço das suas terras austrais.



Mas o vento sul, o nosso vento sul, continua forte, fustigando as gaivotas. As onipresentes gaivotas que aqui pousam nas pedras voltadas para o vento. Para melhor enfrentar a sua inclemência, voltadas para o sul, com as asas cerradas, resistindo à sua vontade. Sem saber que lá onde elas olham. Lá bem lá depois da terra se esconder sua curvatura, as gaivotas estariam voltadas para o oeste.

03 abril 2010

MARE AUSTRALIS

Três lobos marinhos nadam na direção do barco. O vento frio fustiga o convés enquanto ao fundo montanhas ostentam seus cumes esbranquiçados. O mar do canal está bastante calmo, restando ao barco um ondular leve, mal percebido. O céu se mantém com nuvens baixas, alternando uma chuva fina com aberturas que apenas clareiam a paisagem, resaltando o gelo azul dos glaciares. Mais lentos que os golfinhos, que conseguem seguir o barco, os lobos marinhos seguem seu caminho, talvez buscando uma refeição na colônia de pinguins que deixamos para trás, enquanto o Capitão Enrique Rauch comandava o Mare Australis com firmeza e serenidade por entre as ilhas. Tudo é surpreendente nestas paragens austrais.

Uma visão destas também deve ter impressionado os tripulantes de outro barco há muitos anos. Especialmente um jovem chamado Charles que partilhava as acomodações do pequeno buque inglês com o Capitão Robert. Este mapeava a região para o Almirantado Britânico, enquanto seu parceiro observava com paixão a Natureza que os cercava. Há 176 anos, FitzRoy nos deu um levantamento da Terra do Fogo que só foi superado pela moderna tecnologia, enquanto o naturalista Darwin começava a formular uma teoria que mudaria não apenas seus conceitos, mas toda a humanidade para sempre.

15 fevereiro 2010

OLHO O MAR

Olho daqui o mar batendo no costão do Morro das Pedras. A maré baixa deixa várias pedras com carapinhas de algas à mostra. No meio daquelas algas consigo distinguir daqui, parado no acostamento da Geral, uns tufos de alface-do-mar.

Gastronomicamente isto me remete à Praia da Buzela, canto norte da Praia do Rosa. Acho que era 1985. Fomos de kombi e estávamos acampados num rancho. Tínhamos mochilas e livros, dispostos a discutir nosso rumo frente aos ventos novos que bateram verdes nestas terras, carregados em outras mochilas e livros que voltavam, anistiados, ao Brasil.

Porém, continuamos falando de gastronomia. Estávamos, se não me falha a memória, o Taradinho, a Mella, o Jacaré, o Sal, o Paulinho, o Mutante e o Renato, além de mim. Não me recordo se todos estes estavam. Mas foi um acampamento-seminário inusitado. Como não havia um pingo de organização, nada ficou registrado exceto em nossas mentes. Havia sempre um mate pronto. Sempre um bom-dia-brasil. E a culinária local. Siris e buzelas que pegávamos na beira da praia. Cavalinhas que, avisados nós pelos botos, avisamos os pescadores que as capturaram e ganhamos nosso farto quinhão (nunca mais vi cardume tão grande de cavalinhas na beira do mar), além de mariscos e búzios, coletados dos costões. Juntos com as alfaces-do-mar, que viraram salada, acompanhando siri na casca, cavalinhas fritas ou assadas e arroz com moluscos, fossem eles bivalves os gastrópodos.

Enquanto isto, discutíamos que rumo iríamos tomar, dentro do que chamávamos de movimento ecológico. O discurso do PT parecia carecer de tempero. Já as alfaces-do-mar eram deglutidas com azeite e um pouco de sal, já que elas mesmas eram salgadas. Também mais consistentes que suas homônimas terrestres e possivelmente com mais proteína. E isto também me parecia carecer naquele partido em termos de uma visão ecologista.

Já as cavalinhas, o segredo para ficarem sem espinhas estava na hora de limpá-las. Um movimento da faca, na hora de tirar a cabeça, as deixava só com a espinha vertebral. Simples, mas, se não fosse a explicação e a demonstração de um pescador, jamais conseguiríamos.

Há momentos em que precisamos estar atentos ao que ocorre à nossa volta. Momentos que precisamos consultar outras pessoas, olhar o mundo a partir de outras experiências, que não sejam apenas a de nossos umbigos. As idéias verdes, com o perdão do trocadilho, estavam já maduras para florescer. Perdoem-me também os botânicos. E assim se começava a discutir a necessidade do PV por estas plagas.

Assim também trocávamos cartas, com o Sérgio, o Viola e o Rogério, em Floripa o Paulinho que fora morar em S. Paulo, o Frederico em Curitiba e depois no Rio e o Alfredo também no Rio, que tinha um grupo bem forte também.

Estas novidades, como o e-mail, recém estavam sendo construídas. E tínhamos na mão a possibilidade da Bio-Net, uma das redes universitárias percursoras da Internet, onde os ecologistas europeus conseguiam espaço para trocar informações de um modo mais ágil que a correspondência física. Mas nós, amigos da máquina de escrever e do envelope com selo grudado depois de convenientemente lambido, tínhamos ainda restrições ao acesso, pois dependíamos de alguma universidade para entrar na rede e isto, dentro destas instituições, ainda cheiravam a conspiração.

Já os siris, não tínhamos coca para pegá-los e terminamos fazendo isto com pedaços de paus. Parecia um monte de loucos dando pauladas no mar, espedaçando os coitados dos artrópodos que, invariavelmente, terminavam numa panela de água fervente. Capturar siris com pedaços de pau não é uma atividade que prime pela produtividade, pois demanda um gasto de energia muito maior que o adquirido com a pouca carne que cada bicho dispõe. Mas não tínhamos coca, não adiantava. A coca, para quem não sabe, é um círculo de madeira ou metal com uma rede, onde os siris ficavam presos, atraídos por alguma isca.

Mas redes eram estendidas no mar, não na infosfera, que mal se pensava em criar. Mas tínhamos as discussões acaloradas do Em Nome do Amor à Natureza na OC62, casa velha na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Grupo que, até mesmo estatutariamente, fazia ecologia política. Embora recém estivéssemos tentando descobrir que coisa era esta. Assim como, quando vinha para Florianópolis, participava do MEL, o Movimento Ecológico Livre, por onde se passavam as mesmas dúvidas e debates do Em Nome. Já faz quase uma década que atendi o convite expresso numa carta do Sérgio, para que viesse morar em Floripa. Mas aqui estou.

Muita água passou. Água que hoje moveria pequenos hidrogeradores. Muito vento que hoje moveriam geradores eólicos. Os biodigestores... bom, deixa isto pra lá. Todo esta conversa está na ordem do dia há trinta anos. E ainda está incompleta, o que mostra que a temática ecologista esta viva, transformando-se e evoluindo.

Relendo velhas cartas que achei ontem, vejo que muitos destes amigos de antanho continuam no mesmo ritmo. Uns se afastaram, talvez esperando um convite ou algum gás para voltar a participar, outros talvez nunca mais se reintegrem. Todos estamos mais velhos e mais experientes. Talvez sem mostrar ainda o vigor de nossas mentes, que despudoradamente mostrávamos naqueles tempos. Talvez precisando de alguma energia de ativação apenas. Mas muitos outros se juntaram. E aquele nosso papo quase incipiente, ganhou novos personagens e novos desdobramentos.

Mas eu não estava falando de gastronomia?

01 fevereiro 2010

CONSELHO AOS PAIS

Não vou dar conselho nenhum, pois conselho não se dá. Logo, quem continuar a ler está assumindo que pagará por este conselho e o preço, estipulado já de antemão, é um cafezinho. E este aconselhamento vai para todos os pais que têm filhos no ensino fundamental. Pais, ponham os seus filhos numa escola pública. Peguem o dinheiro das mensalidades e comprem um carro novo. Façam aquela viagem tão sonhada. Deixem seus filhos numa escola pública. Sem ar condicionado na sala de aula, sem laboratório, com meia dúzia de computadores para dois mil alunos. Façam isto e vão viajar. Reforme a casa ou dê uma entrada para a casa de praia com o dinheiro que era para pagar a educação do seus filhos. Escola privada? Não mesmo, colegião mesmo! Isto aí, meus pais. E não tenham vergonha de levar e buscar o petiz num BMW novo.

Mas atenção. No último ano, coloquem-no no cursinho. Um bom cursinho. Façma uma poupança durante todo o ensino médio para pagar um bom cursinho. Fundos DI ou ações. Quem sabe derivativos para os mais ousados.

Feito isto, preparem faixas comemorativas. Seus filhos, no vestibular, entrarão numa Federal. Entra pelas cotas, nem precisa de muito estresse. Não sejam idiotas, como eu, em se matar para pagar os melhores colégios. que tenham laboratórios, cadeiras inteiras nas salas de aula, computadores e quadros digitais, além do ar condicionado, é claro. Gastei o que não tinha para garantir a educação de ótimo nível para meus filhos. E agora, no vestibular, os 30% de cotas terminaram afastando-os da Universidade.

Então façam isto. Matricule seus filhos no ensino público. Como efeito secundário, ajude a superlotar as escolas estaduais e municipais, esvazie e quebre os colégios privados.

Não sei se esta política educacional é maquiavelicamente pensada, em nome de uma homogeinização do pensamento por parte do Estado. Mas também pode ser apenas uma atitude de um populismo ingênuo e inconseqüente. Não sei.
Quantos milhares de alunos, em cada cidade, o ensino privado drena da obrigação do Estado em dar educação? Será que a estrutura existente na rede pública de ensino tem condições de assumir toda a população em idade escolar? Será que tem carteiras suficientes? Salas de aula suficientes? Professores suficientes? Terá também condições de oferecer a multiplicidade educacional de todas as propostas pedagógicas disponíveis na sociedade? Ou será que vamos monopolizar a educação sob a égide do Estado? Isto seria uma boa proposta há cem anos atrás, na época do desmoronamento do império russo.

Então, pais, este é o conselho, aproveitem. Não gastem seu dinheiro na educação do seus filhos. Sejam mais inteligentes. E, quem sabe, um consórcio de uma moto para quando ele entrar na faculdade?

16 janeiro 2010

HAITI, HAITI, HAITI

“Tá fazendo na cozinha, tá cheirando aqui”. Era o bordão do Café Haiti. Tinha uma confeitaria deles lá na Praça do Capitólio, numa Porto Alegre que eu quase não reconheço mais quando visito. Lembro até hoje de umas rosquinhas que tinham lá. Eu comia tomando um Guraná Caçula, que vinha numa garrafa pequena. Era o Guaraná Champagne Antártica.

Mas o que me move é outro Haiti. Um que eu acabei de conhecer, na passagem do século XVI para o XVII, pelas mãos da Isabel Allende no seu “La Isla Bajo el Mar”. Li todo, acompanhando o vestibular da minha filha. Terminei de ler e à noite soube do terremoto na ilha. Depois leio que o Cônsul do Haiti em S. Paulo diz que isto é devido à macumba! Mais especificamente ele disse: "Acho que de, tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo... O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá fodido". M. George Samuel Antoine, o nome do senhor esse. É branco. Talvez ainda carregue o mesmo ódio que os grand blancs nutriam por seus escravos e sua superstição chamada Vudu. Maldição de quem? Do deus dos grandes brancos, o único deus verdadeiro? Parece que o Monsieur saiu das páginas que eu estava lendo.

Ou será que em vez de ser uma ilha maldita é um país que cresceu baseado no ódio e na corrupção? O país de um povo eternamente aplastado pelo analfabetismo.

Os escravos sublevados massacraram os brancos naquela época. Vingança contra quem os massacrou por gerações. Mas, logo depois, já no poder, os mais poderosos vendiam seus inimigos como escravos para piratas que os revendiam em outras colônias do Novo Mundo. Um país que esfacelou pelo ódio e pela corrupção. Uma grande favela miserável. Um país que, sujeito a furacões e terremotos, não suportou este desastre num momento em que toda a estrutura pública do país está totalmente destroçada.

Não é maldição do deus branco este. Não é obra do Vudu e seus loas, que são orixás e não demônios. O demônio este que deve ser culpado por toda a situação é o próprio homem. Sua intolerância, vileza e crueldade. E isto independe da cor da pele, da estatura, do comprimento dos cabelos ou qualquer outro parâmetro físico.

Aos haitianos resta rezar. E eles rezam cantando para os seus loas. Quanto a nós cabe ajudar, se não por meios físicos ou financeiros, cantando para nossos orixás ou para os seus deuses, sejam eles únicos ou não.

01 janeiro 2010

A DOENÇA DE DEUS

Perguntaram-me o que é deus. Nestas épocas de mudança de ano, parece que todo mundo fica mais sensível a estas coisas mais assim espirituais ou o que for.

Podemos dizer que deus é o super-organismo do qual, nós organismos, fazemos parte. Nós todos juntos, como num estádio lotado. O mar, o céu, uma montanha, uma lagoa. Estes são deuses. São seres maiores que nós. São super-organismos. Pensamos assim: temos a célula, o tecido, o órgão, o organismo. É só colocar mais um nível: o super-organismo.

É uma floresta, uma geleira ou, mais obviamente, uma colmeia ou um formigueiro. E congregando tudo, tem a própria Terra. A Gaia, do Lutz. Belo nome para a deusa criadora da vida. Mais além há a Lua, o Sol e tantos infinitos outros. Isto é deus.

E nós, super-organismo humano, estamos fora de controle de qualquer coisa pelo menos parecida com equilíbrio. Se alguém viesse do espaço. Uma grande mente viajante espacial sobrevoando a Terra, acharia a parte líquida do planeta linda, com seu verde inteso de vida. A parte gasosa também, com seu azul indelével e com massas brancas a flutuar ao léu. A parte sólida – que incrível, nosso viajante comentaria, os três estados da matéria convivendo num mesmo clima de pressão e temperatura. Que insólito – mas a parte sólida também é linda, com seu veludo verde vivo, de sistemas de aproveitamento a energia do sol. Aproveitamento em vida.

Mas há pontos, veria o viajante, onde há algum tipo de doença. Ali, sobre a pele de veludo do mundo sólido, há umas crostas secas, como cascas de ferida. Onde há febre – sente-se o calor – exala chorume e gases para o resto do planeta, além de devorar o veludo aquele de um modo voraz.

O viajante olharia aquilo tudo. Pensando nele como se tivesse um aspecto humano, ergueria uma sobrancelha e pensaria que este deus está doente.

Fim de 2009

31 dezembro 2009

MONTEIRO LOBATO

Monteiro Lobato ficaria feliz com a descoberta de petróleo no pré-sal. Monteiro Lobato, o criador do Sítio do Pica Pau Amarelo, que encantou a infância brasileira desde a geração dos meus pais até a de hoje. Monteiro Lobato da campanha “O Petróleo é Nosso”, que lutou pela estatização do petróleo no país.

Entretanto, Monteiro Lobato viveu na primeira metade do século passado. Esta foi uma grande época para o Brasil. Tanto para as artes , quanto para a consolidação da República. E Monteiro Lobato foi um grande personagem desta época, como Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, só para ficar nas artes.

Já as reservas do pré-sal foram talvez lagos repletos de vida que, soterrados, resultaram com o passar dos milênios, num chorume oleoso e fedorento. Reservas que vieram da química orgânica do nosso ora famoso carbono. Química que, além da complexidade da vida, cria hidrocarbonetos que oxidam facilmente, gerando energia sob a forma de calor. Ou seja, queimam bem.

Todo este ufanismo do governo do companheiro Lula, visando alavancar a candidatura da camarada Dilma, é baseado na descoberta, à uma profundidade imensamente cara, de reservas que parecem ser significativas de petróleo. Nada mais que carbono que terminará na atmosfera, depois de comido, digerido e excretado por automóveis, fábricas e usinas.

Ou seja, o Governo Federal e seu braço armado capitalista, a Petrobras, estão querendo jogar todos estes incontáveis átomos do pequeno carbono no ar, o que aumenta o isolamento térmico da atmosfera, subindo a temperatura da superfície do planeta. Isto tudo no país do sol abundante, dos rios caudalosos, dos ventos fustigantes, das florestas imensas e do povo mais gentil.

Seremos nós brasileiros incapazes de gerar toda a nossa energia a partir de todas estas fontes que a natureza nos colocou a disposição? Fontes estas não poluentes, renováveis e de baixo impacto ambiental?
Vamos buscar petróleo nas entranhas da Terra, enquanto em todo o mundo se busca alternativas viáveis não poluentes?

Monteiro Lobato talvez estivesse hoje pensando justamente no fim da primeira década de um século novo, onde ele, já homem feito de 28 anos, via na estatização da imensa fonte de energia, que se chamava ouro negro, a abertura de um belo caminho para a industrialização do Brasil. Assim, ele anteviu a Petrobras, iniciando todo este processo. Mas Monteiro Lobato estava em 1910 e não, como nós, em 2010.

O petróleo do pré-sal faria sucesso ouvindo-se Vila Lobos numa vitrola de 78 rotações. Grandes homens viveram no século passado. Sugiro até que a festinha de final de ano da nossa bem amada Petrobras seja ao som de Pixinguinha, Noel e Lupicínio e, por favor, desliguem os celulares.


Fim de 2009

30 dezembro 2009

DEUSES E DEUSES

Como tudo é cíclico na natureza... Os chineses sabem disto há mais de cinco mil anos. Basta ler o I-Ching. A ciência também sabe disto. Tudo no Universo é de natureza oscilatória. Tudo é cíclico.

Os pagãos tinham uma festa para o solstício de inverno – para eles no hemisfério norte, bem verdade – os pagãos adoravam fazer uma festa. Os cristãos, na sua ânsia de tomar o lugar do paganismo no coração das pessoas, em vez de combater a festa, incorporaram-na a seus ritos. E colocaram o nascimento do seu deus único no evento. Assim surge o natal como aniversário do deus Javé em carne.
Uma guerra santa intestina que começou em Roma e teve seus dias de glória na Santa Inquisição. Momento em que os cristãos se vingaram do Coliseu e outras atrocidades romanas.

Porém, como estas coisas de deuses, vão por caminhos diversos, o próprio paganismo, com seus deuses múltiplos, se imiscuiu na igreja católica mesmo. E surgiram santos, deuses menores, que passaram a ter seus próprios adoradores.

O natal hoje é uma festa completamente pagã. A mídia está recheada de imagens do deus Papai Noel. Um deus bonachão que ostenta as cores da coca cola. O espírito de natal, dizem. E este espírito não tem nada do deus menino ou coisa que o valha. É um deus velhinho. Um deus vovô. Assim a festa tomou uma conotação totalmente pagã. Papai Noel, árvore, guirlandas, presentes e na hora do menino deus nequinhas. No máximo o presépio, onde o deus menino aparecem o deus pai do menino, a deusa mãe do menino, o deus burro, a deusa vaca, os três deuses bacanas do oriente, havendo até entre eles um deus negro para não gerar bate-boca.

Parece que o ciclo deu uma volta e o paganismo venceu. O deus cruel, o deus da culpa, o pai do deus menino não está mais dominando a festa, que hoje tem como mestre de cerimônias o deus bonachão que até lembra um Baco desgastado pelas orgias. Tem até esta história do bom velhinho gostar de sentar as criancinhas no colo, mas aí já é outra história. O que vem ao caso aqui é que o poder está todo com o generoso deus Noel, distribuindo presentes e carnês em rigorosamente iguais proporções, movendo a roda da fortuna.

Já o deus do deserto grita do alto dos céus que ele é o deus único. Mas não é todo o mundo que acredita. E os outros deuses acham-no muito prepotente.

29 dezembro 2009

PALITINHOS DE AÇÚCAR

Tudo depende da boa e velha glicose. O C6H12O6. Carbono, hidrogênio e oxigênio montados de tal maneira que formam palitinhos que se juntam em estruturas maiores, desde a pequena e popular sacarose, vulgo açúcar, de apenas duas moléculas, até o amido e a celulose. As plantas possuem uma incrível propriedade de pegar os elementos da água e do ar e, usando sabiamente a energia do sol, nas fabriquetas celulares chamadas cloroplastos, guardam-na com muita eficiência nestas pequenas baterias estáveis.

A partir de uma pequena energia de ativação e do oxigênio do ar, toda esta energia acumulada é liberada, seja como fogo, seja como alimento, o que não deixa de ser a mesma coisa. E assim a energia deste palito é liberada, resultando também nas moléculas constituintes do processo, ou seja, a água e o dióxido de carbono, fechando o ciclo. Coisa que nós, animais, somos exímios em fazer.

Mas nada disto é novo. Aliás, escutei isto tudo proferido pela boca de um alemão meio maluco lá de Porto Alegre, conhecido como Lutz. O engenheiro agrônomo e ecologista de primeira hora José Antônio Lutzenberger.

Na Terra temos muito carbono, o suficiente para transformar o planeta numa imensa estufa, talvez como tenha ocorrido com Venus. Mas este carbono está em grande parte acumulada sob a forma dos palitinhos aqueles, guardado habilmente pelos vegetais. Outra parte deste carbono foi também transformado pelas plantas, acumulado e posteriormente soterrado, vindo a formar hidrocarbonetos devidamente retirados de circulação sob forma de petróleo, gás natural, carvão, xisto. Por outro lado, esta mesma estufa foi a responsável pela manutenção das temperaturas da superfície terrestre praticamente estáveis. Afinal uma variação de -50°C a 50°C é praticamente nada frente as variações de milhões de graus presentes no Universo. E esta estabilidade permitiu o desenvolvimento da vida como a conhecemos.

Se todo este carbono for liberado para a atmosfera, a estufa será ligada. Não significa o final do planeta, nem da vida na sua superfície, mas certamente o fim de uma era geológica e o início de outra, com outras paisagens, outro climas, outros seres vivos. Coisa que talvez só imaginemos em filmes de ficção científica.
Entretanto, o homem está dando aquela energia de ativação necessária para a queima de todos estes palitinhos. Algo como riscar um fósforo num paiol de dinamite, como num desenho animado. Só que em vez de ficar com a cara queimada e saindo fumaça da cauda, o dano será muito maior.

Porém, desde os tempos que dominamos o fogo, sabemos que esta queima libera energia. Interessados nesta energia disponível, estamos queimando mais e mais palitos, buscando mais energia. Recordando-se que a energia pela unidade de tempo é potência e que potência é sinônimo de poder, o homem busca mais poder, dispondo de mais e mais energia.

Entretanto, esta queima libera, como dito antes, o dióxido de carbono e a água. E estes voltam ao ciclo da natureza. E o carbono reforçará, na atmosfera, o chamado efeito estufa, reduzindo as perdas de calor da superfície da Terra para o espaço.

Havendo a indagação de o que fazer para evitarmos este dramático final de uma era, podemos responder que basta manter o carbono guardado naquelas estruturas estáveis que os vegetais aprenderam a fazer.
Se ele não virar gás, se ele não for queimado, não haverá aumento do dióxido de carbono livre na atmosfera e, portanto, a estufa se manterá como está.

A Teoria de Gaia, formulada entre outros pelo próprio Lutz, é extremamente interessante neste sentido. A Terra, como um todo, possui o dom da vida e busca formas de se autorregular.

Assim como Saturno ostenta seus anéis, Júpter suas tempestades, a Terra ostenta a vida. E isto se deve a esta química esquisita do carbono e a ação de moléculas orgânicas mais complexas, como a clorofila, a hemoglobina e o próprio ácido desoxirribonucleico, vulgo ADN ou DNA para os seguidores dos anglicanismos.

Entretanto, o Lutz dizia que este super-organismo é inconsciente. Será? Nós somos, como bem percebido por ele, apenas um tecido deste ser vivo. Um tecido canceroso. Mas isto significa que não está havendo um controle ecológico sobre as ações deste tecido e ele está desequilibrando o planeta. Transformamos a superfície como mega-formigueiros, com grande concentração de energia e, portanto de calor, com impermeabilização do solo e golfadas gigantescas de dióxido de carbono e outros gases no ar que nos cerca. Esta energia toda vem da queima dos hidrocarbonetos. Não estamos apenas tocando o ciclo do carbono da natureza, mas estamos jogando na atmosfera carbono que estavam guardados nas entranhas do planeta há milhões de anos, talvez os restos da sopa inicial da vida.

Precisamos ter em mente que não estamos na Terra, como se ela fosse uma nave e nós os passageiros, mas somos a Terra e a inviabilização dela também nos inviabilizará.

Dezembro de Copenhague//09

DE ÔNIBUS

Faz um dia lindo de sol lá fora, mas estou no meu quarto, ouvindo rádio e escrevendo. Aqui, por estas plagas, sem carro é brabo. Depender de transporte coletivo é uma coisa difícil, que grande parte do nosso povo aprende a fazer. Não poderia haver um Floresta via Coqueiros? Aí eu poderia ir para o Itaguaçú dependendo de apenas um ônibus, para ver as bruxas se banhar na baía sul.

De carro não demora mais que cinco minutos para ir, porém de ônibus, tem que se esperar o primeiro passar, ir até o Centro, esperar o segundo e voltar para o Continente. Ou descer em Capoeiras, seguir a pé até o Abraão e esperar o segundo. E olha que os ônibus no final de semana, com sorte, passam a cada hora.

Dia destes falaram que haveria greve na semana do vestibular da UFSC. É a única categoria de fora do serviço público que faz greve. Parece até que o sindicato dos trabalhadores, o patronal e a prefeitura de Floripa estão mancomunados. Todo ano fazem greve que resulta invariavelmente em aumento de passagem, além dos inúmeros dias de prejuízo direto para a população. Além de, ultimamente, andarem reduzindo os horários das linhas. E esta é mais cara passagem de uma capital do Brasil. Bem que o Ministério Público poderia investigar esta relação, afinal, parece meio incestuosa, não?

Primeiros dias de 12//09

03 novembro 2009

OUTROS FILHOTES

A Praia do Itaguaçú está tomada por outros filhotes hoje. Filhotes de humanos. Sabem, né? É um primata muito abundande por aqui.

As areias, as águas, as pedras. Tudo cheio desses macaquinhos brincalhões e espalhafatosos. De todos os tipos, a gurizada. Meninos, meninas. Loiros, indígenas, morenos, negros. Em todos os matizes. Inclusive há dois na pedra do ninho. Mergulham de uma pedra mais baixa e saem nadando desengonçados até a pedra do namoro. Esbaforidos se deitam sobre a pedra.

As gaivotas, com seu voar elegante, mantém uma distância segura. A pedra do ninho não.

Chegam agora até ela adultos. Estes vão até o seu topo, onde as gaivotas ficaram durante meses a fio. Vão os homens. Sobem com seus gestos simiescos. Como, aliás, somos. Diga-se de passagem.

Já os macaquinhos pulam na água. Felizes, brincam de se empurrar. Boiam. Não fazem nada. Pulam de contentes. Gritam e grunhem os macaquinhos, com sua comunicação vocal. Uma guria bem pequena e dourada, nos cachinhos, na pele, no biquíni amarelo, banha seus cabelos na beira do mar. Enfia os crespos na água, que mal encobre suas canelas, e os arruma para trás. Molha-se na cachoeira que escorre pelas costas.

Já na pedra, chega um terceiro macacão. O primeiro mergulha bem. O segundo, recém tomando a configuração adulta, se joga como pode. O terceiro nem se arrisca a subir na pedra no ninho.

Passado algum tempo de paz, novamente a pedra se vê obrigada a sustentar nas costas quase uma dezena de macaquinhos machos. Alguns olham desafiadores para o mar lá embaixo. Outros apenas tomam banho de sol.

Já na Praia das Palmeiras, mais adiante, também infestada por estes filhotes, há macaquinhos por todas as pedras mais próximas. Nas mais distantes as gaivotas ainda reinam e não parecem apresentar disposição para abandonar o posto.

Entre o Cambirela e a Ponta de Baixo se empilham quatro serras ao longe. Entre a Ponta de Baixo e a Pedra Branca, são outras cinco. Longe, mostram-se azuladas pelo ar distante. E lembram estradas inóspitas e vistas soberbas. Lá de onde se vê aqui o mar. O mar onde eu, calmamente acomodado, tomando uma cerveja, vejo as serras ao longe e, mais próximos, os guris se aventurando nas pedras.

Nadam os macaquinhos – e são sete! – entre a ponta da pedra grande e a pedra da quilha. Lá, quase mortos, se amontoam sobre uma pedra pequena que a maré baixa deixa à mostra. O primeiro que chega sobe na pedra e vibra, levantando os braços aos céus, em sinal de vitória ao conquistar aquele pequeno território que se torna enorme para o macaquinho-macho que pensa conquistar todas as serras à volta. Um território pequeno, já que são sete guris sobre a pedra.

Mas nada adianta conquistar novos mundos, se não narrarmos a odisseia. Assim sendo, o nosso conquistador, junto com dois outros companheiros jogam-se de novo ao mar, iniciando a jornada de volta.

Os três nadam a muito custo para o continente. No meio do caminho param exaustos. Tomam fôlego e retomam bravamente o caminho. Quando os três já estão quase chegando, os demais se lançam também ao mar.

Dezenas de outros macaquinhos-machos aguardam os nossos heróis, gritando e pulando. Tudo se acalma quando o segundo grupo chega. Cansados, aguardam na praia o dia acabar, enquanto relatam os feitos náuticos aos demais.

25 outubro 2009

CALMARIA

Tudo está parado sobre o mar baixo. Os pássaros pousados sobre as pedras aguardam a tempestade que já se mostra no sul da baía. A natureza segue seu rumo.

A maré baixa expõe as algas que acarpetam as pedras achatadas, as que passam quase que integralmente submersas quando o mar sobe um pouco.

Aqui onde estou, o céu está nublado, mas ainda claro, mas o sul se mostra com um céu baixo, rugoso e pesado como o chumbo, do qual se pinta. Nuvens escondem os morros mais altos.

Todos permanecem quietos, exceto um pequeno hidroavião que passa a leste com a lentidão dos ultraleves e seu barulho de cortador de grama.

Uma gaivota se posta, agachada, na pedra onde havia o ninho, como se nele estivesse. Outra permanece numa pedra próxima.

O mau tempo avança, vindo do sudoeste. A chuva se faz sobre os morros do continente, fechando também o tempo para o sudeste. O sul da ilha também escurece.

Em pouco tempo, o morro do Cambirela desaparece sob a chuva. Aqui só o vento começa a soprar mais forte. Um bando de gaivotas, que o enfrentam, começam a grasnar e discutir como velhas fofoqueiras.

O mar se arrepia e alguns pingos esporádicos se fazem sentir. O bando continua no ar grasnando. As pedras se enchem de biguás e outras gaivotas. Numa delas se distingue um martim-pescador.

O vento chega forte desde o sul, descabelando as árvores. Os morros no fundo da baía desaparecem totalmente. Tudo se preparou para a tempestade, mas em fim não chove por aqui.

A ARIDEZ

Não tem mais ninho na pedra. Voltei de viagem e não tem mais ninho. A pedra está como se ele tivesse sido arrancado, varrido. Uma gaivota na pedra do namoro e outra ave em outra pedra. Mais distantes, biguás tem seus lugares sobre outras pedras e. ao fundo, uma terceira gaivota se banha. Nem sinal do filhote. Ele seria uma gaivota de plumagem ainda parda, algo que conservam até o verão, mesmo já tendo o porte dos adultos. Aos poucos que a plumagem parda vai cedendo lugar à definitiva, preta e branca.

Outras gaivotas aparecem por todos os lados. Mas o ninho foi destruído.

Talvez um humano. Daqueles que passam pela calçada sem nada ver, talvez um humano finalmente visse. Vendo, pegou seu barquinho, remou até a pedra, destruiu o ninho e matou o filhote. Ou talvez o vento sul tenha acordado de mau humor e, mais forte que o filhote e o ninho, tudo varreu para o mar. Ou o gavião aquele que outro dia passou pelos ares, piando ameaçadoramente, não fosse talvez tão pequeno para dar cabo do galeto.

Será que caiu do ninho? E sem o filhote, os próprios pais ou outras gaivotas o destroçaram? Ou o vento, estando o ninho sem os cuidados devidos, o resumiu às suas palhas que foram carregadas?

Na pedra do namoro, agora, estão as duas gaivotas. Pouco depois, uma delas volta para a pedra do ninho, novamente árida e fica agachada onde as palhas estavam.

O frango deve ter morrido. Ou está, como bom adolescente, aproveitando suas novas habilidades, neste caso, aéreas. E o ninho, perdendo a razão de ser, tenha sido degradado, pelos pais ou pelo vendo.

Quem quiser que escolha. A natureza segue seu percurso e, no entanto, nada se fecha no final da história. Apenas começou e terminou com a árida pedra cumprindo sua sina de bruxa empedrada do Itaguaçú. Viveu por algumas luas e voltou à sua aridez. O feitiço do diabo. A mandinga de Anhangá-pitã.

21 outubro 2009

O PINTO VIRANDO FRANGOTE

Há dois dias, passei pelo Itaguaçú e visitei as gaivotas. O pinto estava bem visível na pedra do ninho. Movia-se já com uma certa desenvoltura, ainda sob o olhar cuidadoso da mãe, que o observava à distância.

O dia ostentava nuvens baixas que se imiscuíam com os morros, além da calmaria e da maré muito baixa fazendo com que as pedras expusessem seus limos.

Já hoje tem um vento fraco desde o sudeste e uma nevoa que esconde os morros, mas o mar se apresenta alto e tem certa força, com alguns respingos sobre a pedra do ninho. O filhote está lá, sobre as palhas, e a mãe ao lado, na pedra mesma. Interessante como o filhote se camufla bem entre as palhas. A plumagem infantil se mistura à cor do ninho e a evolução, ainda negada por alguns, se incumbiu de mimetizá-los.

Nosso pinto já virou um frango quase do tamanho dos pais. Coça as penas talvez sonhando com o dia em que alçará voo.

Ao largo, outras gaivotas planam procurando comida. Ou apenas se divertem ao sabor do vento. Sabe-se lá o que pensam os pássaros.

Já os humanos, estes primatas barulhentos, passam em seus carros. Indiferentes à névoa, ao vento e às gaivotas. Todos, exceto um que, como eu, tenta enxergar o sul através do vento.

A outra gaivota pousa sobre a pedra do ninho. Caminha na diagonal do filhote, abre lentamente as asas e voa até a pedra do namoro. O frangote se levanta, abre as asas, mas volta ao aconchego das palhas. O pai retorna de sua demonstração e pousa na pedra. Zeloso professor.

O filhote vai até seu encontro e deve ter recebido algum petisco. Um gostoso peixinho regurgitado.

Logo a seguir, um terceiro adulto se aproxima. O pai estica o pescoço em alerta e o frango some da vista no ninho. O macho alça voo e consigo, a muito custo aqui da praia, distinguir o infante. Agachado e quieto no ninho. A mãe permanece sobre a pedra, no mesmo local onde estava desde que cheguei. O pai sai atrás do intruso e, pouco tempo depois, a mãe alça voo também.

Passa o tempo e os adultos chegam ao ninho quase ao mesmo instante. O frangote finalmente se levanta do ninho e vai em direção aos pais. Está seguro. O primeiro adulto sai voando. O segundo caminha um pouco sobre a pedra e também voa, deixando o filhote novamente sozinho. É como se eles dissessem: Vem, filho, voa! Mas o coitado pula, bate as asas meio desajeitado e não consegue ir além. A envergadura de suas asas já está de bom tamanho, mas a tentativa não foi muito convincente.

Um dos pais, após esta lição, volta à pedra e se posta ao lado do ninho em pé. Mais um pouco e o filhote estará acompanhando os pais pelos ares. Aprenderá a pescar e a brigar pelos restos dos restaurantes na beira da praia. Verá como o mundo é muito maior que aquela pedra e se aventurará pelos ares e pelo mar.

Os adultos se alternam. Precisam levar mais comida para que o filhote a processe em ossos, músculos e penas. E cocô também, mas isto só servirá para agregar mais matéria orgânica à árida pedra que de há muito ostenta uma coroa de vida.

Um raro gavião passa piando o seu pio de águia, mas o ovo já virou pinto e o pinto já virou um frango que já não tem mais tamanho para virar janta para aquele ameaçador e minúsculo rapineiro.

16 outubro 2009

VENTO E SAL

O vento sul bate forte sobre o ninho. Uma gaivota permanece no posto saindo a seguir, talvez para buscar alimento. O filhote permanece, porém não se consegue ver o infante da calçada.

Daqui se vê que uma gaivota tenta sair da praia em direção ao ninho, mas não consegue devido ao vento contrário. O filhote aparece sobre o ninho. Está só. Aprendendo por conta própria a enfrentar a inclemência dos elementos que farão parte de seu dia-a-dia. O vento e o mar. Fustigado, este joga uma chuva de sal sobre o ninho. Assim é a vida no mar, aprende o frangote.

O vento sopra com força, penteando os jerivás que se agrupam na minha frente. Quatro cabeludos e magros troncos parecem avançar em direção ao sul, com suas cabeleiras penteadas para trás. Parecem saídos de algum filme do Pink Floyd.

Parecem, pois continuam cravados no solo com suas raízes rasas e sólidas. Porém quem avança para a pedra, com voos laterais que os grandes pilotos da Primeira Guerra dominavam, foi nossa gaivota. Acomoda-se no ninho e permanece ali, voltada para o sul a enfrentar o vento. A segunda gaivota pousa na pedra. Permanecem ali por um curto espaço de tempo, já que a primeira volta a alçar voo.

O chuvisqueiro salobro vindo do mar atinge a praia, acabando com o que resta da lata da rural. O mar revoltado com o vento, quebra forte, quase no muro da calçada, levantando um spray que toma conta do ambiente. O próprio vento sacode com força os veículos estacionados na beira. Mas a gaivota resiste sobre a pedra. Não está no ninho. Neste apenas o filhote permanece, tentando se proteger da tempestade de vento e sal.

04 outubro 2009

ROTINA A TRÊS

Na pedra uma gaivota está no ninho enquanto a outra dá plantão bem ao lado. Parece ter alimentado o filhote que ainda não se arriscou fora do quente do ninho, pelo menos neste dia ventoso e ameno de primavera.

Em outra pedra mais distante vejo que há mais uma gaivota chocando em seu ninho. Numa terceira, um par de biguás abrem as asas com as costas ao sol. O sol que hoje, sob nuvens grossas vindas do sul, ainda assim os aquece.

Porém neste aqui a nova vida rompeu a casca.

O gigante do topo do Cambirela esconde-se sob as nuvens baixas lá do outro lado. E ao sul há sol. Se vê o sol sobre os cumes mais ao sul, na boca da baía.

O nosso brioso casal, por sua vez, permanece sobre a pedra do ninho por um bom tempo, até que uma delas voa para outra pedra e o pinto se ergue. Espia, ao lado da gaivota que ficou, toma confiança e sai do ninho.

27 setembro 2009

VEIO NA CHUVA

Tempos sem escrever sobre o nosso intrépido casal, chego num domingo chuvoso. Tinha passado algumas vezes pela praia, mas sem parar para escrever. Afinal, as gaivotas apenas se revezavam no choco.

Estranhamente tem uma gaivota na pedra do ninho mas ela não está sobre os ovos, mas de pé sobre a pedra. Sai, caminha, volta, olha, volta a se afastar.

Talvez os ovos estejam se abrindo. Talvez a ave tenha perdido o interesse pelo ninho. Voou para a pedra do namoro, deixando o ninho sozinho. Encontra-se com a outra gaivota. Esta vai até o ninho mas voa até longe, retornando logo a seguir à pedra. Observa. Tem algo fora do ninho. E caminha até a gaivota. Tem um pinto na pedra! Veio na chuva. Um filhote nascido na chuva. Caminhou cuidadoso pela pedra, abrindo as asinhas. Talvez ali estivesse desafiando o vento fraco. Talvez dissesse para o ar que um dia ele o dominaria. Como os seus pais o dominam.

Os pais ambos ficam no ninho por algum tempo. Logo, um voa para outra pedra. Terá que encontrar comida para mais um bico. Entretanto, a gaivota que fica parece estar a alimentar o filhote. Haverá só um? Haverá mais? Isto é algo que meus olhos não alcançam. Uma teleobjetiva registraria melhor que olhos nus.

Um pinto está lá. É aparente sobre o ninho. Não vejo se há um segundo. Não sei nem quantos ovos existiam ali. O choco das gaivotas costuma ter um a três ovos. Mas aquele filhote lá está. E já abre as asas. Estas não parecem de pinto, mas de um príncipe dos ares e dos mares.

Assim como o biguá que se coça caprichosamente na pedra da espera. Outras pedras agora também apresentam gaivotas em seus ninhos. Mas esta aqui é a pedra que abrigou o primeiro casal e agora o primeiro pinto.

O pássaro sai do ninho e, noutra pedra, volta-se para a minha direção e grasna a plenos pulmões. Mas não é para mim a sua indignação. Várias outras gaivotas voam e gritam saindo da praia. Algumas pousam nos corrimãos, outras nos postes de iluminação da calçada.

O filhote fica olhando ao longe o intenso grasnar das gaivotas. Uma volta para o ninho. As demais permanecem um instante na calçada e logo batem asas e desaparecem.

Após toda a agitação, o pinto desaparece no fundo do ninho e a gaivota põe sua cabeça no sovaco. Hábito estranho este das aves. Dormir com a cabeça sob a asa. Estranho pelo menos para nós, primatas de sovacos peludos.

Cochila na calmaria. O biguá na outra pedra continua se coçando. Todas as atividades belicosas das gaivotas e o biguá apenas se coça. Mais sensatos os biguás. Se há uma coisa que gaivota não é. Ser sensata. Gaivota não é sensata e gosta de roubar a comida de outra gaivota.

Uma vez a praia estava cheia de comida, restos de algum restaurante. As gaivotas brigavam por um único pedaço que pendia do bico de uma, que foge desesperada das outras que a perseguem com tenacidade. Já os biguás preferem pegar seu alimento no fundo do mar. Nadam atrás da vítima com desenvoltura pelo fundo do mar. Os biguás gostam de ter a deliciosa sensação do peixe se debatendo em sua goela, enquanto se deleita num glupt fatal.

Já o pinto andou se deliciando com o alimento já gosmentamente babado e regurgitado por mamãe. Jamais entenderemos o gosto das aves. Como compreender um bicho de pernas finas e cloaca multifuncional?

A gaivota, após o cochilo e alimentar o filhote voa até perto do abricó, embaixo do qual estou estacionado, retornando para o ninho, para admiração incondicional do filhote. Ele deve achar a mamãe o próprio super-herói japonês. Mas a gaivota volta a pousar, agora de costas para o ninho. O pinto se aventura pela pedra. Nas costas da mamãe. Se cair vira comida de peixe, mas, antes de qualquer escorregão, volta para o ninho e se acomoda para o entardecer que se aproxima.

19 setembro 2009

NOVOS HÁBITOS

Nestes últimos tempos adquiri mais um hábito diário. Assim como tomar banho, escovar os dentes e outros que-tais. Pois adquiri o hábito de ler o camarada Marquinhos Espíndola na contracapa do jornal ou no seu blog.

Hábito este culturalmente saudável, para quem quer ficar informado sobre o que acontece por estas bandas. Grandes dicas e eventuais bondades. Seguindo uma dica e incentivado por uma destas bondades, fui ver a Cia. Mário Nascimento de Dança, apresentando seu último espetáculo no Teatro Pedro Ivo.
Embora tenha me provocado uma emoção estética muito positiva, que é uma bela forma de dizer que gostei, não vou falar sobre o espetáculo em si. Afinal não sou crítico de arte, seja que arte for.

Quero falar sobre o que vi do lado de cá da ribalta. Se havia trinta pessoas na platéia era muito. Trinta. Um espetáculo daquele porte com tão pouco público. O teatro é longe? A divulgação é falha? Talvez sim. Mas qual o motivo de tão pouca gente comparecer? Talvez seja de gerações se criarem na frente da tevê. Há pelo menos quarenta anos temo nosso lazer portátil, filtrado pela tela da tevê.

Se fosse um bonitão de algum programa global, estaria lotado. Mesmo que seu currículo artístico nada mais dissesse que a criatura é ex-BBB. Mesmo que ele nem conseguisse pronunciar algo como currículo artístico sem tropeçar nos erres e nos tes.

Mas ali, naquela noite no Teatro Pedro Ivo não havia nenhum global. Havia seis excelentes artistas no palco. Falaram, declamaram, cantaram, tocaram e dançaram para deleite de apenas trinta almas. Cinco na platéia para cada um no palco. Além do oco das poltronas vazias, apenas trinta saíram melhor do que entraram ali.

Eu tive o privilégio de seguir o conselho do grande Marquinhos e ir ver. Outras quatrocentas mil pessoas não. Acho que certo estava eu.

UM BIGUÁ

Nem só de gaivotas vive a Praia do Itaguaçú. Embora invisível para a maioria dos humanos que passa por lá apressada ou desligada, ali no mar acontecem cenas dignas de serem vistas, assim como na beira aparecem pedras dignas de serem exploradas.

Mas vamos ao mar. Um biguá aponta sua cabeça escura no mar. O pescoço longo sustenta o bico erguido. Nele, um peixe insiste em se manter vivo. Raio de prata se movendo vigorosamente.

Ao contrário das gaivotas e outras aves marinhas, o biguá não mergulha do ar para apanhar suas presas. Ele fica boiando, com o bico apontado para cima e os olhos vasculhando a água. Assim que encontra algo que lhe interessa, mergulha da superfície mesmo e nada pelo fundo do mar, buscando seu alimento.

O peixe, coitado do peixe, trava uma luta inglória contra o bico do biguá que lhe parece imenso. Luta, enquanto o pássaro o mantém apenas preso.

Num determinado momento, sentindo as forças do peixe se esvaírem, a ave, em poucos movimentos com o pescoço, direciona o peixe com a cabeça para dentro de sua boca e glup! completa sua refeição.

Depois toma um banho, limpando o corpo com o bico e sacudindo alegremente as penas. Minha vó sempre dizia para não tomar banho de barriga cheia porque eu podia ter uma congestã, como ela falava. Eu nunca tive uma congestã ao tomar banho após uma refeição. Muito menos o biguá. Este, aliás, nem devia ter uma vó lhe dando conselhos. Mergulha. Some no fundo da água atrás de algum outro peixinho.

A cena, já sem o biguá, é dominada por duas traineiras brancas e lentas a cruzar a baía. Seguem em fila quase na linha do horizonte. Cortam a faixa verde do mangue da Ressacada, que separa o mar do céu com suas brancuras. Passam pelos morros do sul da ilha rumo algum futuro cardume para encher as redes.

Nestes mares cada um provê o seu sustento de sua maneira. Para infelicidade geral dos peixes e moluscos.

08 setembro 2009

COMPANHIA

Em dois níveis as gaivotas estão acompanhadas. Aliás, em diversos, mas no momento me interesso por dois.

No mais próximo há hoje uma parceria na pedra do ninho. A gaivota continua no choco, mas há uma outra ave fora do ninho, sobre a pedra, bem próxima. Uma ave de corpo e cabeça pardos e anel branco no pescoço. Talvez um filhote? Creio que não. Parece ser um martim-pescador. A proporção entre a cabeça e o corpo é diferente da de uma gaivota e parece muito emplumado para ser um filhote recém nascido. Sim, pois ontem passei pelo Itaguaçú e estava só a gaivota no choco. Muito emplumado o pássaro, se bem que hoje não dá para falarmos em pássaros emplumados sem outras conotações.

Chega outra gaivota e a ave voa. Um martim-pescador, sem dúvida. Deu para ver bem o bico e o jeito de voar. Porém, num instante, chega outra gaivota, espantando a primeira. Agora sim chegou a companheira do ninho.

O martim-pescador pousa numa pedra próxima. Afinal, ele só está querendo uns peixinhos. A primeira gaivota voa para longe, estava querendo talvez os ovos. Já a nossa gaivota, após enxotar o intruso, voa para outra pedra, também próxima e fica ali aguardando a troca de turno.

Isto me faz lembrar os tempos de caserna, onde havia troca de turno entre os sentinelas e quando estava se aproximando a hora da troca da guarda, ficávamos no alojamento parados, esperando render os outros. Assim como acontece com estas penosas.

Em outro nível – voltando ao início da crônica, havia dois níveis – outras das bruxas empedradas do Itaguaçú ganham vida em ninhos de gaivotas. As que ficam em terra já têm sua vida em cabeleiras dreads. dos cactos rainha da noite. As que ficam na beira da praia também exibem suas vidas em cabelos ralos de liquens. Entretanto as que estão no mar agora estão a receber os louros de ninhos junto com a dádiva de viver. Nem que seja por algum tempo. Nem que seja até os filhotes alçarem vôo. Porém os ninhos permanecerão até se decomporem pelo tempo, varridos pelo cruel vento sul e sua chuvarada invernal. Ou, pelo contrário, serão habitados por outros animais ou crescerá alguma orquídea, cuja semente foi carregada por uma das gaivotas presa na palha da praia. Na palha da praia que surge trazida pelo mar, vinda dos costões e depositada polidamente na praia. E assim assistimos o poderoso momento das bruxas se envidando. Deixando sua conotação pétrea para ser algo mais. Ser um pequeno ecossistema onde a vida se faz. A vida.

Este orixá que nos faz compartilhar algo com as gaivotas, as árvores, a própria paisagem. Centelhas orgânicas da natureza.

31 agosto 2009

HOJE O DIA

Uma das nossas heróicas penosas hoje estava na pedra do nada. Nada fazendo, enquanto a outra gaivota fazia o de sempre, chocava.

Porém um intruso chega até a pedra do nada, querendo para si o domínio da primeira. Deu-se a briga. Nossa gaivota expulsou a inimiga com grasnados e impropérios, depois de se atracarem numa luta que terminou dentro da água.

A verde água da baía sul sob um dia de radiante primavera. Dia com direito a vento Nordeste que, aqui, é terrau. A água está plácida como a íris de um imenso olho. Verde. O olho e o mar.

Após a vitória nossa gaivota voou até o ninho, orgulhosa. Seguiu até uma pedra mais alta, ao lado da pedra do banho e, quase que imediatamente, voou para a areia, onde enxotou outra intrusa, com bicadas no pescoço.

Hoje o dia está mesmo para batalhas. Apesar do sol, apesar do vento, apesar da íris do mar.

SEGUE ASSIM

Mas o dia segue assim. Completamente ensolarado. Primaverilmente ventoso. O Nordeste continua a soprar, forçando o tempo bom. Nesta condição favorável de sol e vento e praia e água, um guri deixa sua bola ir. Se vai para a água, na inclemência do vento que a sopra para lá. E na água se foi mar adentro, até que uma das bruxas a pega em seu regaço. Uma bruxa-pedra pequena e velha. Enrugada, a pedra segura a bola que fica ali, para desespero do guri a clamar pelo pai.

O super-herói de plantão, o pai. E o homem, de calção, entra na água e nada. Nada e nada. Assim como pode, assim como sabe. E chega na pedra que manteve consigo a bola. Como se soubesse. Como se viva fosse. E lá a bruxa alcançou a bola para o pai, cumprindo a sina. Um de super-herói, a outra de bruxa empedrada.

Com a bola na mão, volta ao filho que, na praia, o aplaude e venera, entre gritos e pulinhos de alegria.

E assim roda o mundo. Com seus heróis resgatando tesouros entre as pedras do mar. E sobre elas, as pedras, em seu ninho solitário, a gaivota tudo observa, enquanto doa seu calor aos ovos, onde a vida se enforma.

28 agosto 2009

CHATA ESSA VIDA

Chata essa vida das gaivotas. Uma sempre no choco e a outra atrás de comida ou tomando banho ou fazendo o mais absoluto nada. Olhando a vista. No máximo batendo boca com outras gaivotas. E gostam de brigar, roubar a comida uma da outra ou grasnar uma com a outra.

Mas o nosso famoso casal passa a metade do tempo no choco. Fazendo absolutamente nada a não ser aquecer os pimpolhos naqueles úteros de casca fina. Por onde os pequenos recebem o ar e o calor que o adulto de plantão placidamente dá.

Enquanto isto, a outra gaivota chegou e pousou na mesma pedra que, na outra vez, ela usou para não fazer nada. A pedra do nada.

E assim nossas gaivotas vão nomeando os seus domínios. E assim elas envidam as pedras do Itaguaçú. Ali onde temos o ninho, um pequeno Pão de Açúcar margeado por uma serra de Liliput. Monolitos emersos pequenos do mar da Baía Sul.

A troca de turno se dá de um modo pouco cortês. Acho que nossas gaivotas precisam discutir a relação. A de plantão voou para a pedra do namoro, deixando os ovos a descoberto. Cadê mamãe? Cadê papai? Os ovos se perguntam. Deve ser a segurança que elas têm devido à falta de inimigos naturais. Rapidamente a da pedra do nada assume o posto. Nem olharam uma para a outra. E a vida segue chata para as gaivotas do Itaguaçú.

23 agosto 2009

HOJE CHOVEU



Cheguei tarde hoje. Na verdade nem estava pensando em ir ver as gaivotas do Itaguaçú, mas como estava chovendo copiosamente na Beira Mar Sul, quando voltava da Lagoa, após uma tarde de recordações, conversas e risos, resolvi dar uma visitada no nosso casal Laridae. Chique, né? Dá um ar mais científico a estas crônicas ciconiformes. Mas vamos parar com isto, porque, por aqui, o rigor científico ficou no armário, junto com ternos de riscado e de linho.

Cheguei e a chuva era apenas um chuvisqueiro fino. Entretanto havia uma terceira gaivota querendo se aproximar do ninho. Das nossas, creio que a fêmea permanecera no ninho chocando, enquanto a outra, que deveria ser o macho, alçou vôo da pedra do namoro, onde estava, para proteger a parceira.

Em pouco tempo, a ameaça cessou e a gaivota macho voltou para a pedra anterior, onde permaneceu sem fazer nada, pelo menos no nosso ponto de vista de observadores humanos incultos.

Agora, passada a ameaça, permanece apenas uma neblina sobre um anoitecer apressado pelas nuvens escuras e baixas. Com tudo permanecendo em paz eu me retiro.

A NÃO-VIAGEM DE UM NATURALISTA

Quarta feira passei pelo Itaguaçú e as gaivotas continuavam a cumprir sua missão de pais. Revezamento no cocho, por enquanto. Agora, no sábado, ainda estão. Uma altaneira sobre o ninho, sob o sol, sobre a pedra. A árida pedra que não mais o é.

A outra está na pedra do banho. Não sei se movida pela fome ou por um quero-quero que pousou sobre a pedra, alçou vôo nossa gaivota. É interessante notar aqui esta interação entre aves marinhas e terrestres. Nas pedras vemos além das gaivotas, biguás e trinta réis temos quero-queros, bem-te-vis e até pombas.

Mas a gaivota voou ao largo num círculo imperfeito. Saiu da pedra do banho e numa curva chegou até a praia, onde estou eu. Sem pousar vasculhou a areia com os olhos, possivelmente tentando identificar algo para se alimentar, seguiu o círculo, tendo o ninho quase como o centro e retornou à pedra do banho. Não pousou, nem o quero-quero saiu.

Mudou a trajetória e passou bem próximo do ninho. Talvez percebendo a tranqüilidade da outra, mudou novamente o caminho, descrevendo outra curva até uma outra pedra próxima.

Se este trajeto fosse um relógio, sendo o ninho o centro e a praia as 6 horas, a pedra do banho estaria às 11 horas e o destino final às 5. Se assim fosse, a gaivota partiria das 11 horas, seguiria em sentido anti-horário até às 6, continuaria o percurso inverso dos ponteiros, voltaria para às 11, seguiria até às 10 ou 9, onde mudaria a trajetória até o centro desse relógio imaginário. Dali seguiria até umas 2 horas e assumiria o sentido dos ponteiros até às 5, onde parou o relógio. Um relógio imaginário que mede as distâncias em vez do tempo.

Terminado o vôo, a gaivota do ninho se levantou, ajeitou os ovos e voltou à posição de choco. Li num trabalho muito bom (BRANCO, J. O. Reprodução das aves marinhas nas ilhas costeiras de Santa Catarina, Brasil) que as gaivotas põem de um a três ovos, com média próxima a dois. Formam casais estáveis mas nidificam em bandos nas ilhas. Temos aqui um casas estável, com possivelmente mais de um ovo no ninho, porém estão isoladas das demais. Existem muitas outras gaivotas nas pedras próximas e nas demais, mas em torno deste ninho não há outras. E pelo que tinha visto antes, o nosso casal nem permite a aproximação das outras.

Os inimigos naturais, continuando no trabalho aquele, são os urubus e os gaviões. Porém estes não se apresentaram nestas plagas, talvez até pela proximidade urbana.

O mar está calmo, um pouco mais alto que da vez passada, céu nublado com vento terrau em rajadas e um calor primaveril de vinte graus. Deu na rádio há pouco.

Passado algum tempo, onde as coisas permanecem como estão, inicia-se a troca da guarda e o momento de eu me despedir das nossas Larus dominicanus (nada como um trabalho científico para nos embasarmos)

E assim segue a não-viagem de um amador naturalista ao redor da praia.

16 agosto 2009

ENVIDAM AS PEDRAS

As pedras do Itaguaçú – as bruxas – têm uma cobertura de aves sobre si. As pedras embruxadas têm aves sobre si. Gaivotas, biguás, garças. As aves envidam as bruxas do Itaguaçú. A natureza em si desfaz o encantamento que Anhangá-pitã lançou sobre a orgia pagã. O deus que os cristãos achavam ser o diabo dos índios. Índio não tem diabo.

Além disto tudo, os pássaros dominam as pedras. Áridas pedras que se envidam. Ávidas pedras naqueles pequenos corpos, leves e quentes. Aves. Rainhas do céu.

AS GAIVOTAS SEGUEM

Seguem elas nas pedras do Itaguaçú. Uma no ninho e outra se banhando. Na pedra do banho aquela. Estão estabelecidas, fizeram um lar nas pedras do Itaguaçú. Nas bruxas do Itaguaçú. Tem a pedra do namoro. A pedra do banho. A pedra do ninho. As gaivotas, vagabundas pachorrentas, têm um lar nas pedras.

A do choco toma sol nas costas. Virada para sudeste. Na última visita que fiz, ela estava virada para o pôr-do-sol. O horário? O vento? O clima a move. Ou apenas a vontade de apreciar outras paisagens, das muitas que elas têm dali. Daquela pedra.

Alimentação farta. Os peixes da praia calma e limpa. Os restos dos humanos, subproduto dos restaurantes. Qual gaivota desperdiçaria um espinhaço de tainha ou centenas de cabeças de camarão? Não saberia dizer se apreciam os ratos. As garças adoram. Tudo isto e com esta vista. Realmente ótimo para se construir um lar.

As gaivotas sabem aproveitar mais o lugar onde moram que os humanos. Estranho isto, não?

Mas agora a gaivota do banho pousa na pedra do ninho. Dá bicadas embaixo das asas, nas costas. Se ajeita após o banho. Para uma certa indiferença da outra. Coisa de ave, decerto.

Até resolver dar uma levantada. Aí as gaivotas se revezam no ninho. Trocam a guarda do choco. A que se levanta ajeita as penas mas permanece no ninho. Ambas permanecem, mas trocam os papéis. A que se banhava foi para o choco e a outra se levanta, ajeita as penas e voa para outra pedra. Lá segue a se coçar. Afinal, deve dar uma aflição ficar horas literalmente sobre ovos.

Com a barriga sobre os ovos. Na verdade, entre as gaivotas a gestação é mais compartilhada que entre nós, vivíparos. Aqui só a fêmea carrega a cria até o nascimento. Entre as gaivotas, o macho divide a tarefa. A árdua tarefa. A árdua tarefa sobre a árida pedra.

A rotina retorna às gaivotas. Porém com os papéis invertidos. Uma estica as penas enquanto a outra cobre o choco. Realmente a democracia sexual entre as gaivotas é maior que entre os humanos. Quem dirá se compararmos com as galinhas.

14 agosto 2009

AS GAIVOTAS

As serras parecem não existir do outro lado da baía. A ilha mais se intui que se vê. Mas sobre sua pedra – árida pedra – uma das gaivotas permanece impassível na nobre missão do choco.

A outra se banha apoiada numa pequena pedra atrás da onde está o ninho. Parece estar se alimentando de peixinhos que se protegem junto à pedra. Ou então apenas se banha mesmo. Na distância fica mais difícil distinguir estes detalhes. Detalhes para nós observadores, não para os coitados dos peixinhos que podem estar virando refeição na moela da gaivota.

Comeu? Banhou-se? O certo é que saiu, caminhando por sobre a pedra, do meu campo de visão.

Mas lá para as serras, o que parecia ser um belo entardecer terminou se cobrindo com uma névoa pudica. Pode ser até que chova. Preocupação humana que deve ser indiferente para uma ave marinha que seguirá protegendo os seus ovos.

12 agosto 2009

O CASAL

O casal de gaivotas, ontem, estava no maior namoro no entardecer do Itaguaçú. As gaivotas do ninho. Da árida pedra do mar do Itaguaçú.

Hoje uma está no ninho e a outra (o outro?) em outra pedra. Dando um tempo? Esticando as pernas? Afinal, ficar agachado num ninho, talvez já em cima de um ovo durante doze horas por dia, deve deixar os joelhos doendo. Bom, quanto às 12 horas, consideremos que haja democracia sexual entre as gaivotas.

De repente a gaivota que estava no ninho voa. Para a pedra do desejo, onde estavam ontem. O outro esticou os olhos e se interessou. Mas não foi voando na carniça. Não. Jogou-se da pedra na água e foi nadando mansamente. Subiu a pedra caminhando como um cavalheiro e foi namorar.

Executaram um tipo de dança com movimentos rítmicos de pescoço, com as cabeças coladas pelo lado e bicadelas mútuas. Lado a lado. A pedra essa é bem plana, se comparada com as demais e permite uma boa dedicação ao flerte.

O macho subiu nas costas da fêmea. E ficou literalmente de pé sobre as costas da fêmea. Ela o equilibra e ele bate as asas, enquanto abaixa a traseira do corpo se dando a cópula. Se bicam ardentemente, apesar de parecer algo desajeitado para nós com nossas bocas mais, digamos, anatômicas para tal fim.

Em poucos instantes tudo se acaba. Lembremos que se trata de aves, como as galinhas e os patos. Ficam a uma certa distância uma da outra, enquanto se recompõem.

Pouco tempo depois recomeçam a dança. Mais próximas da água desta vez. Em outra pedra um quero-quero observa. Assim como eu, nesta função inusitada de voyeur. Seguem as danças eróticas, pelo menos para as gaivotas há um grande erotismo naquelas danças. E segue o esfrega-esfrega de pescoço e bicadas afetuosas.

Porém, outra gaivota se aproxima do ninho e uma delas, possivelmente o macho, voa em torno da pedra do ninho, espantando o intruso. Pousa na árida pedra indicando ser seu o domínio. Entretanto, o namoro foi postergado. Agora ele está soberano sobre a pedra.

No final do dia, com o sol se escondendo entre as serras, as gaivotas voltam ao ninho. Trabalham um tanto para ajeitá-lo. A fêmea se acomoda e o macho toma sentinela no ponto mais alto da pedra. A árida pedra.

São cinco horas. O sol já lateral ilumina as pedras com uma maior dramaticidade. Os biguás, gaivotas e outros pássaros menos cotados continuam esvoaçando por entre a paisagem. Nosso casal organiza o lar. Ao mesmo tempo em que cuida a presença eventual de invasores. Sempre tem um pescoço erguendo uma cabeça branca.

Até que se acomodam. E este se acomodar mostra o momento da minha retirada. E saio pensando que voam centenas de aves à volta, entre as pedras do Itaguaçú. Tem até nosso casal que confia a ponto de erguer um ninho a cerca de apenas meia centena de metros da praia E os pássaros voam sob o sol sensual da primavera que começa a se mostrar para nós.

E o incrível, o mais incrível disto tudo, é que, ocupado com seus afazeres, os humanos nada vêem disto tudo.