01 janeiro 2014

ILHA

Plantas engruvinhadas chegaram à margem. Como uma ilha vaga tocada pelo vento. Decepadas de algum lugar por facões certeiros e cruéis. Um pouco convincente vento leste. Vento suficiente para fazer a ilha errar pela lagoa. Pouco suficiente para mantê-la coesa em sua deriva. Sem bússola nem norte. Uma ilha na lagoa na ilha no mar. Uma ilha ao quadrado, portanto. Uma ilha vaga em uma ilha que dizem terem vagado desde Açores. Vaga ilha. Uma ilha que, breve, perecerá sobre um vento mais atroz, como este que se insinua desde o sul. Que perecerá sob os pés de crianças peraltas que surgirão, como por mágica, apesar dos protestos dos pais. Pais que não levantarão a bunda de suas cadeiras de praia ao lado de isopores recheados. Recheados de delícias, como cervejas, refrigerantes e galinhas com farofa. Isopores recheados de galinhas recheadas com farofa. Repetição doméstica da ilha da ilha a se estraçalhar pelos pés infantes, ao som de para com isto, menino! Dito com a boca espirrando a farofa das galinhas. Estas estraçalhadas pelas mãos engorduradas de habilidosas e gordas mães. Porém, enquanto isto não se concretiza, segue a ilha a sua natureza quadrática, para regozijo de escritores e engenheiros. Lagoa da Conceição, 2014, dia 1.

UM BARCO

Um barco. Um barco é um bom local para se começar uma história. Um barco encalhado. Na sua lenta e melancólica morte. Um barco naufragado. Reciclando-se sereno em corais. Um barco a navegar. Desafiando a natureza das coisas ele próprio. Um bom local para se começar uma história. Sobre as águas. Um barco que é a sua própria nação. Ilha errante a ferir aquele universo hostil e imperscrutável. Aquele país de monstros gigantes. Serpentes cruéis, polvos que dilacerem baleias. País também dos peixes, dos botos e das sereias. Sim, um barco é um local para se começar uma história. Uma história de seus habitantes. De pescadores, corsários e navegantes, fugitivos, náufragos e guerreiros. Homens que nasceram jogados ao mar num batismo atávico. Homens que morreram jogados ao mar, na pequenez de seu corpo abandonado à deriva. Homens que viveram sobre as águas, crispada a pele em sal e sol. Um bom local para começar uma história. Lagoa da Conceição, dez’13

A JANELA

Acordei numa cama duma enfermaria do velho hospital. Não conseguia engolir e tinha muita sede. Também mal conseguia falar e, mesmo que conseguisse, não conseguia entender direito o que as enfermeiras, todas claras e de baixa estatura, falavam naquela língua rapidinha e cantada difícil de entender. Eu tinha um curativo no pescoço e aquilo explicava o meu estado geral. Uma cirurgia delicada, risco de vida e coisas que eu não compreenderia mesmo que entendesse. As drogas para a dor que me administravam no soro, gotejando naquele tubinho que terminava em algo espetado sob um esparadrapo, faziam com que eu não entendesse muito bem o que estava acontecendo. Não sabia quantos dias eu estava ali, muito menos quantos dias eu permaneceria naquele estado. Havia uma janela sobre a minha cama. Aliás, algo que, no início, me incomodava, mas que fui admirando cada vez mais. O que me mantinha numa nesga de lucidez era aquela janela sobre o leito. Não conseguia ver nada além do céu, mas era um céu azul. Eu fechava os olhos e, quando os abria, o céu se apresentava negro e pontilhado de estrelas. Ela que me conectava com a vida. Eu sabia que havia passado mais um dia, embora não os contasse. Sabia que havia chuva ou frio. Vento ou um amanhecer luminoso. A sede me afligia, mas aquelas pequenas enfermeiras estavam ali apenas para insistir que eu não poderia estar sentido, pois estava tomando soro. Soro com sei um lá o que, que me fazia misturar os sonhos com a realidade. Aliás, passei a desconfiar até das paisagens celestes da janela. Haveria mesmo sol? Chuva? Neve? Como assim neve? Não seria possível neve naquelas paragens. Ou seria? O parapeito da janela era alto e, um dia, subi na cama e espiei para baixo. Ali estava o quintal da igreja da cidade onde nasci. O pomar por onde os padres caminhavam rezando ou trabalhando. Até o velho Frei Antônio com seus trajes de capuchinho e chapéu de palha, cuidando das árvores. Levantou a cabeça e sorriu, entre sua longa barba, me alcançando uma maçã. Mas este quintal eu espiava sobre o muro no tempo em que era criança. E já sou um homem maduro. Não estava certo. Quando era noite e eu não estava a passear por campos ou praias distantes no tempo ou no espaço, reconhecia outros pacientes da enfermaria, apenas pelos sons. Um gemia, outro gritava baixinho e outro ainda apenas roncava. Não conseguia os ver, pois não tinha forças para sequer me erguer na cama. Então o Frei Antônio só poderia ter sido sonho, eu concluía na minha esparsa lucidez. Ele já era velho na minha infância. Mas a janela. O homem que gemia, aliás, estava a cada noite mais longe. Mais longe até que sossegou. Teria morrido? Teria empurrado sua cama, cada noite um pouquinho, até terminar fugindo de lá? Mas isto também devia ter sido sonho. A lua me visitou numa noite. Uma lua clara e quase cheia. E assim se fez por várias noites, fora as que nevavam ou chovia forte, ou fraco, ou apareciam aqueles gatos me espiando. Gatos poderiam espiar na janela. Era da natureza deles serem curiosos. E ágeis. Gatos sim. O Frei Antônio não. Estes exercícios me faziam manter a lucidez. E a sede. A boca seca. Uma noite uma mulher me trouxe uma gaze molhada e me esfregou a boca. Quis agradecer, mas não conseguia falar direito. Ela não era uma das enfermeiras. Não via direito seu rosto, pois estava escuro. Mas suas roupas não brilhavam alvas como daquelas diligentes criaturinhas. Outras noites ela veio. Mas não havia lua. Nem gatos. Outro dia foi o Frei Antônio que me molhou a boca. Mas era sonho. Tinha quase certeza. Numa noite, porém, ela não apareceu mais. Nem ela nem o homem que roncava. Ela talvez fosse a acompanhante daquele homem. Assim meus companheiros se iam. Não sei para onde. Nunca saberei. As enfermeiras não falavam. Só trocavam os frascos de soro e insistiam que eu não tinha sede. Pedi, mais com gestos que com a voz, uma gaze úmida para meus lábios. A moça sorriu. Se foi e não me trouxe gaze nenhuma. A janela era minha fonte de lucidez. Todo o dia, entre as cochiladas que eu dava. Amanhecia, o dia se firmava, depois entardecia e a noite assumia seu turno. Seguiam noites de chuva, dias claros, dias sombrios, noites estreladas, os gatos e, eventualmente, a lua me brindava com seu clarão branco iluminando meus lençóis. Ficava pensando no pomar do Frei Antônio, embaixo da janela, sob o luar... as sombras das árvores contrastando com aquela luminosidade quase irreal... Às vezes acordava com a claridade do dia nos meus olhos. Às vezes o frio da nevasca me encolhia sob as cobertas. Comecei a perceber todas estas nuances daquela minha vida sobre o leito da enfermaria, apesar da sede constante. Uma sede que estava se arraigando na minha garganta, se enraizando como uma planta que se fixa tanto na terra de um vaso que, ao ser virado, saía compactada num bloco só. Bem como o Frei Antônio me mostrou outro dia, enquanto transplantava uma muda de laranjeira para o pomar ali embaixo. A sede começava a fazer parte de mim, como a dor na garganta, a falta de palavras e as enfermeiras miúdas e ligeiras com seus frascos de soro. E a janela que se abria para o mundo. - Frei! Frei! – corri gritando em sua direção. - Que foi, menino? - Sonhei que estava doente num hospital! - Mesmo? O que tu tinhas? - Não sei, mas estava com muita sede. - Então vai logo até ali na torneira tomar água. menino! Floripa, abril’12