31 agosto 2009

HOJE O DIA

Uma das nossas heróicas penosas hoje estava na pedra do nada. Nada fazendo, enquanto a outra gaivota fazia o de sempre, chocava.

Porém um intruso chega até a pedra do nada, querendo para si o domínio da primeira. Deu-se a briga. Nossa gaivota expulsou a inimiga com grasnados e impropérios, depois de se atracarem numa luta que terminou dentro da água.

A verde água da baía sul sob um dia de radiante primavera. Dia com direito a vento Nordeste que, aqui, é terrau. A água está plácida como a íris de um imenso olho. Verde. O olho e o mar.

Após a vitória nossa gaivota voou até o ninho, orgulhosa. Seguiu até uma pedra mais alta, ao lado da pedra do banho e, quase que imediatamente, voou para a areia, onde enxotou outra intrusa, com bicadas no pescoço.

Hoje o dia está mesmo para batalhas. Apesar do sol, apesar do vento, apesar da íris do mar.

SEGUE ASSIM

Mas o dia segue assim. Completamente ensolarado. Primaverilmente ventoso. O Nordeste continua a soprar, forçando o tempo bom. Nesta condição favorável de sol e vento e praia e água, um guri deixa sua bola ir. Se vai para a água, na inclemência do vento que a sopra para lá. E na água se foi mar adentro, até que uma das bruxas a pega em seu regaço. Uma bruxa-pedra pequena e velha. Enrugada, a pedra segura a bola que fica ali, para desespero do guri a clamar pelo pai.

O super-herói de plantão, o pai. E o homem, de calção, entra na água e nada. Nada e nada. Assim como pode, assim como sabe. E chega na pedra que manteve consigo a bola. Como se soubesse. Como se viva fosse. E lá a bruxa alcançou a bola para o pai, cumprindo a sina. Um de super-herói, a outra de bruxa empedrada.

Com a bola na mão, volta ao filho que, na praia, o aplaude e venera, entre gritos e pulinhos de alegria.

E assim roda o mundo. Com seus heróis resgatando tesouros entre as pedras do mar. E sobre elas, as pedras, em seu ninho solitário, a gaivota tudo observa, enquanto doa seu calor aos ovos, onde a vida se enforma.

28 agosto 2009

CHATA ESSA VIDA

Chata essa vida das gaivotas. Uma sempre no choco e a outra atrás de comida ou tomando banho ou fazendo o mais absoluto nada. Olhando a vista. No máximo batendo boca com outras gaivotas. E gostam de brigar, roubar a comida uma da outra ou grasnar uma com a outra.

Mas o nosso famoso casal passa a metade do tempo no choco. Fazendo absolutamente nada a não ser aquecer os pimpolhos naqueles úteros de casca fina. Por onde os pequenos recebem o ar e o calor que o adulto de plantão placidamente dá.

Enquanto isto, a outra gaivota chegou e pousou na mesma pedra que, na outra vez, ela usou para não fazer nada. A pedra do nada.

E assim nossas gaivotas vão nomeando os seus domínios. E assim elas envidam as pedras do Itaguaçú. Ali onde temos o ninho, um pequeno Pão de Açúcar margeado por uma serra de Liliput. Monolitos emersos pequenos do mar da Baía Sul.

A troca de turno se dá de um modo pouco cortês. Acho que nossas gaivotas precisam discutir a relação. A de plantão voou para a pedra do namoro, deixando os ovos a descoberto. Cadê mamãe? Cadê papai? Os ovos se perguntam. Deve ser a segurança que elas têm devido à falta de inimigos naturais. Rapidamente a da pedra do nada assume o posto. Nem olharam uma para a outra. E a vida segue chata para as gaivotas do Itaguaçú.

23 agosto 2009

HOJE CHOVEU



Cheguei tarde hoje. Na verdade nem estava pensando em ir ver as gaivotas do Itaguaçú, mas como estava chovendo copiosamente na Beira Mar Sul, quando voltava da Lagoa, após uma tarde de recordações, conversas e risos, resolvi dar uma visitada no nosso casal Laridae. Chique, né? Dá um ar mais científico a estas crônicas ciconiformes. Mas vamos parar com isto, porque, por aqui, o rigor científico ficou no armário, junto com ternos de riscado e de linho.

Cheguei e a chuva era apenas um chuvisqueiro fino. Entretanto havia uma terceira gaivota querendo se aproximar do ninho. Das nossas, creio que a fêmea permanecera no ninho chocando, enquanto a outra, que deveria ser o macho, alçou vôo da pedra do namoro, onde estava, para proteger a parceira.

Em pouco tempo, a ameaça cessou e a gaivota macho voltou para a pedra anterior, onde permaneceu sem fazer nada, pelo menos no nosso ponto de vista de observadores humanos incultos.

Agora, passada a ameaça, permanece apenas uma neblina sobre um anoitecer apressado pelas nuvens escuras e baixas. Com tudo permanecendo em paz eu me retiro.

A NÃO-VIAGEM DE UM NATURALISTA

Quarta feira passei pelo Itaguaçú e as gaivotas continuavam a cumprir sua missão de pais. Revezamento no cocho, por enquanto. Agora, no sábado, ainda estão. Uma altaneira sobre o ninho, sob o sol, sobre a pedra. A árida pedra que não mais o é.

A outra está na pedra do banho. Não sei se movida pela fome ou por um quero-quero que pousou sobre a pedra, alçou vôo nossa gaivota. É interessante notar aqui esta interação entre aves marinhas e terrestres. Nas pedras vemos além das gaivotas, biguás e trinta réis temos quero-queros, bem-te-vis e até pombas.

Mas a gaivota voou ao largo num círculo imperfeito. Saiu da pedra do banho e numa curva chegou até a praia, onde estou eu. Sem pousar vasculhou a areia com os olhos, possivelmente tentando identificar algo para se alimentar, seguiu o círculo, tendo o ninho quase como o centro e retornou à pedra do banho. Não pousou, nem o quero-quero saiu.

Mudou a trajetória e passou bem próximo do ninho. Talvez percebendo a tranqüilidade da outra, mudou novamente o caminho, descrevendo outra curva até uma outra pedra próxima.

Se este trajeto fosse um relógio, sendo o ninho o centro e a praia as 6 horas, a pedra do banho estaria às 11 horas e o destino final às 5. Se assim fosse, a gaivota partiria das 11 horas, seguiria em sentido anti-horário até às 6, continuaria o percurso inverso dos ponteiros, voltaria para às 11, seguiria até às 10 ou 9, onde mudaria a trajetória até o centro desse relógio imaginário. Dali seguiria até umas 2 horas e assumiria o sentido dos ponteiros até às 5, onde parou o relógio. Um relógio imaginário que mede as distâncias em vez do tempo.

Terminado o vôo, a gaivota do ninho se levantou, ajeitou os ovos e voltou à posição de choco. Li num trabalho muito bom (BRANCO, J. O. Reprodução das aves marinhas nas ilhas costeiras de Santa Catarina, Brasil) que as gaivotas põem de um a três ovos, com média próxima a dois. Formam casais estáveis mas nidificam em bandos nas ilhas. Temos aqui um casas estável, com possivelmente mais de um ovo no ninho, porém estão isoladas das demais. Existem muitas outras gaivotas nas pedras próximas e nas demais, mas em torno deste ninho não há outras. E pelo que tinha visto antes, o nosso casal nem permite a aproximação das outras.

Os inimigos naturais, continuando no trabalho aquele, são os urubus e os gaviões. Porém estes não se apresentaram nestas plagas, talvez até pela proximidade urbana.

O mar está calmo, um pouco mais alto que da vez passada, céu nublado com vento terrau em rajadas e um calor primaveril de vinte graus. Deu na rádio há pouco.

Passado algum tempo, onde as coisas permanecem como estão, inicia-se a troca da guarda e o momento de eu me despedir das nossas Larus dominicanus (nada como um trabalho científico para nos embasarmos)

E assim segue a não-viagem de um amador naturalista ao redor da praia.

16 agosto 2009

ENVIDAM AS PEDRAS

As pedras do Itaguaçú – as bruxas – têm uma cobertura de aves sobre si. As pedras embruxadas têm aves sobre si. Gaivotas, biguás, garças. As aves envidam as bruxas do Itaguaçú. A natureza em si desfaz o encantamento que Anhangá-pitã lançou sobre a orgia pagã. O deus que os cristãos achavam ser o diabo dos índios. Índio não tem diabo.

Além disto tudo, os pássaros dominam as pedras. Áridas pedras que se envidam. Ávidas pedras naqueles pequenos corpos, leves e quentes. Aves. Rainhas do céu.

AS GAIVOTAS SEGUEM

Seguem elas nas pedras do Itaguaçú. Uma no ninho e outra se banhando. Na pedra do banho aquela. Estão estabelecidas, fizeram um lar nas pedras do Itaguaçú. Nas bruxas do Itaguaçú. Tem a pedra do namoro. A pedra do banho. A pedra do ninho. As gaivotas, vagabundas pachorrentas, têm um lar nas pedras.

A do choco toma sol nas costas. Virada para sudeste. Na última visita que fiz, ela estava virada para o pôr-do-sol. O horário? O vento? O clima a move. Ou apenas a vontade de apreciar outras paisagens, das muitas que elas têm dali. Daquela pedra.

Alimentação farta. Os peixes da praia calma e limpa. Os restos dos humanos, subproduto dos restaurantes. Qual gaivota desperdiçaria um espinhaço de tainha ou centenas de cabeças de camarão? Não saberia dizer se apreciam os ratos. As garças adoram. Tudo isto e com esta vista. Realmente ótimo para se construir um lar.

As gaivotas sabem aproveitar mais o lugar onde moram que os humanos. Estranho isto, não?

Mas agora a gaivota do banho pousa na pedra do ninho. Dá bicadas embaixo das asas, nas costas. Se ajeita após o banho. Para uma certa indiferença da outra. Coisa de ave, decerto.

Até resolver dar uma levantada. Aí as gaivotas se revezam no ninho. Trocam a guarda do choco. A que se levanta ajeita as penas mas permanece no ninho. Ambas permanecem, mas trocam os papéis. A que se banhava foi para o choco e a outra se levanta, ajeita as penas e voa para outra pedra. Lá segue a se coçar. Afinal, deve dar uma aflição ficar horas literalmente sobre ovos.

Com a barriga sobre os ovos. Na verdade, entre as gaivotas a gestação é mais compartilhada que entre nós, vivíparos. Aqui só a fêmea carrega a cria até o nascimento. Entre as gaivotas, o macho divide a tarefa. A árdua tarefa. A árdua tarefa sobre a árida pedra.

A rotina retorna às gaivotas. Porém com os papéis invertidos. Uma estica as penas enquanto a outra cobre o choco. Realmente a democracia sexual entre as gaivotas é maior que entre os humanos. Quem dirá se compararmos com as galinhas.

14 agosto 2009

AS GAIVOTAS

As serras parecem não existir do outro lado da baía. A ilha mais se intui que se vê. Mas sobre sua pedra – árida pedra – uma das gaivotas permanece impassível na nobre missão do choco.

A outra se banha apoiada numa pequena pedra atrás da onde está o ninho. Parece estar se alimentando de peixinhos que se protegem junto à pedra. Ou então apenas se banha mesmo. Na distância fica mais difícil distinguir estes detalhes. Detalhes para nós observadores, não para os coitados dos peixinhos que podem estar virando refeição na moela da gaivota.

Comeu? Banhou-se? O certo é que saiu, caminhando por sobre a pedra, do meu campo de visão.

Mas lá para as serras, o que parecia ser um belo entardecer terminou se cobrindo com uma névoa pudica. Pode ser até que chova. Preocupação humana que deve ser indiferente para uma ave marinha que seguirá protegendo os seus ovos.

12 agosto 2009

O CASAL

O casal de gaivotas, ontem, estava no maior namoro no entardecer do Itaguaçú. As gaivotas do ninho. Da árida pedra do mar do Itaguaçú.

Hoje uma está no ninho e a outra (o outro?) em outra pedra. Dando um tempo? Esticando as pernas? Afinal, ficar agachado num ninho, talvez já em cima de um ovo durante doze horas por dia, deve deixar os joelhos doendo. Bom, quanto às 12 horas, consideremos que haja democracia sexual entre as gaivotas.

De repente a gaivota que estava no ninho voa. Para a pedra do desejo, onde estavam ontem. O outro esticou os olhos e se interessou. Mas não foi voando na carniça. Não. Jogou-se da pedra na água e foi nadando mansamente. Subiu a pedra caminhando como um cavalheiro e foi namorar.

Executaram um tipo de dança com movimentos rítmicos de pescoço, com as cabeças coladas pelo lado e bicadelas mútuas. Lado a lado. A pedra essa é bem plana, se comparada com as demais e permite uma boa dedicação ao flerte.

O macho subiu nas costas da fêmea. E ficou literalmente de pé sobre as costas da fêmea. Ela o equilibra e ele bate as asas, enquanto abaixa a traseira do corpo se dando a cópula. Se bicam ardentemente, apesar de parecer algo desajeitado para nós com nossas bocas mais, digamos, anatômicas para tal fim.

Em poucos instantes tudo se acaba. Lembremos que se trata de aves, como as galinhas e os patos. Ficam a uma certa distância uma da outra, enquanto se recompõem.

Pouco tempo depois recomeçam a dança. Mais próximas da água desta vez. Em outra pedra um quero-quero observa. Assim como eu, nesta função inusitada de voyeur. Seguem as danças eróticas, pelo menos para as gaivotas há um grande erotismo naquelas danças. E segue o esfrega-esfrega de pescoço e bicadas afetuosas.

Porém, outra gaivota se aproxima do ninho e uma delas, possivelmente o macho, voa em torno da pedra do ninho, espantando o intruso. Pousa na árida pedra indicando ser seu o domínio. Entretanto, o namoro foi postergado. Agora ele está soberano sobre a pedra.

No final do dia, com o sol se escondendo entre as serras, as gaivotas voltam ao ninho. Trabalham um tanto para ajeitá-lo. A fêmea se acomoda e o macho toma sentinela no ponto mais alto da pedra. A árida pedra.

São cinco horas. O sol já lateral ilumina as pedras com uma maior dramaticidade. Os biguás, gaivotas e outros pássaros menos cotados continuam esvoaçando por entre a paisagem. Nosso casal organiza o lar. Ao mesmo tempo em que cuida a presença eventual de invasores. Sempre tem um pescoço erguendo uma cabeça branca.

Até que se acomodam. E este se acomodar mostra o momento da minha retirada. E saio pensando que voam centenas de aves à volta, entre as pedras do Itaguaçú. Tem até nosso casal que confia a ponto de erguer um ninho a cerca de apenas meia centena de metros da praia E os pássaros voam sob o sol sensual da primavera que começa a se mostrar para nós.

E o incrível, o mais incrível disto tudo, é que, ocupado com seus afazeres, os humanos nada vêem disto tudo.

10 agosto 2009

O NINHO

Tem um ninho numa pedra do Itaguaçú. Duas gaivotas trabalham duro para construir o ninho na aridez da pedra. O material buscam na praia. Voam baixo e carregam gravetos até o alto da pedra onde o ninho está. Acharam um local que permite a nós, caminhantes da praia, acompanhar o desenvolvimento da obra da natureza. Ninho, ovo, filhote, peixinhos, plumas. E os primeiros vôos até deixarem o ninho.
Mas após o trabalho as duas gaivotas foram até outra pedra. Esta mais baixa e entrando suavemente no mar. Ali elas se banham. Viradas de modo a observar o ninho, se banham. Descansam do dia extenuante, carregando os gravetos da praia para a pedra. Se revezando na tarefa de dar forma ao ninho sobre a pedra.
Tudo isto perto da praia. Sobre a pedra. Sobre uma das bruxas do Itaguaçú a vida se faz diante de nós.