27 setembro 2009

VEIO NA CHUVA

Tempos sem escrever sobre o nosso intrépido casal, chego num domingo chuvoso. Tinha passado algumas vezes pela praia, mas sem parar para escrever. Afinal, as gaivotas apenas se revezavam no choco.

Estranhamente tem uma gaivota na pedra do ninho mas ela não está sobre os ovos, mas de pé sobre a pedra. Sai, caminha, volta, olha, volta a se afastar.

Talvez os ovos estejam se abrindo. Talvez a ave tenha perdido o interesse pelo ninho. Voou para a pedra do namoro, deixando o ninho sozinho. Encontra-se com a outra gaivota. Esta vai até o ninho mas voa até longe, retornando logo a seguir à pedra. Observa. Tem algo fora do ninho. E caminha até a gaivota. Tem um pinto na pedra! Veio na chuva. Um filhote nascido na chuva. Caminhou cuidadoso pela pedra, abrindo as asinhas. Talvez ali estivesse desafiando o vento fraco. Talvez dissesse para o ar que um dia ele o dominaria. Como os seus pais o dominam.

Os pais ambos ficam no ninho por algum tempo. Logo, um voa para outra pedra. Terá que encontrar comida para mais um bico. Entretanto, a gaivota que fica parece estar a alimentar o filhote. Haverá só um? Haverá mais? Isto é algo que meus olhos não alcançam. Uma teleobjetiva registraria melhor que olhos nus.

Um pinto está lá. É aparente sobre o ninho. Não vejo se há um segundo. Não sei nem quantos ovos existiam ali. O choco das gaivotas costuma ter um a três ovos. Mas aquele filhote lá está. E já abre as asas. Estas não parecem de pinto, mas de um príncipe dos ares e dos mares.

Assim como o biguá que se coça caprichosamente na pedra da espera. Outras pedras agora também apresentam gaivotas em seus ninhos. Mas esta aqui é a pedra que abrigou o primeiro casal e agora o primeiro pinto.

O pássaro sai do ninho e, noutra pedra, volta-se para a minha direção e grasna a plenos pulmões. Mas não é para mim a sua indignação. Várias outras gaivotas voam e gritam saindo da praia. Algumas pousam nos corrimãos, outras nos postes de iluminação da calçada.

O filhote fica olhando ao longe o intenso grasnar das gaivotas. Uma volta para o ninho. As demais permanecem um instante na calçada e logo batem asas e desaparecem.

Após toda a agitação, o pinto desaparece no fundo do ninho e a gaivota põe sua cabeça no sovaco. Hábito estranho este das aves. Dormir com a cabeça sob a asa. Estranho pelo menos para nós, primatas de sovacos peludos.

Cochila na calmaria. O biguá na outra pedra continua se coçando. Todas as atividades belicosas das gaivotas e o biguá apenas se coça. Mais sensatos os biguás. Se há uma coisa que gaivota não é. Ser sensata. Gaivota não é sensata e gosta de roubar a comida de outra gaivota.

Uma vez a praia estava cheia de comida, restos de algum restaurante. As gaivotas brigavam por um único pedaço que pendia do bico de uma, que foge desesperada das outras que a perseguem com tenacidade. Já os biguás preferem pegar seu alimento no fundo do mar. Nadam atrás da vítima com desenvoltura pelo fundo do mar. Os biguás gostam de ter a deliciosa sensação do peixe se debatendo em sua goela, enquanto se deleita num glupt fatal.

Já o pinto andou se deliciando com o alimento já gosmentamente babado e regurgitado por mamãe. Jamais entenderemos o gosto das aves. Como compreender um bicho de pernas finas e cloaca multifuncional?

A gaivota, após o cochilo e alimentar o filhote voa até perto do abricó, embaixo do qual estou estacionado, retornando para o ninho, para admiração incondicional do filhote. Ele deve achar a mamãe o próprio super-herói japonês. Mas a gaivota volta a pousar, agora de costas para o ninho. O pinto se aventura pela pedra. Nas costas da mamãe. Se cair vira comida de peixe, mas, antes de qualquer escorregão, volta para o ninho e se acomoda para o entardecer que se aproxima.

19 setembro 2009

NOVOS HÁBITOS

Nestes últimos tempos adquiri mais um hábito diário. Assim como tomar banho, escovar os dentes e outros que-tais. Pois adquiri o hábito de ler o camarada Marquinhos Espíndola na contracapa do jornal ou no seu blog.

Hábito este culturalmente saudável, para quem quer ficar informado sobre o que acontece por estas bandas. Grandes dicas e eventuais bondades. Seguindo uma dica e incentivado por uma destas bondades, fui ver a Cia. Mário Nascimento de Dança, apresentando seu último espetáculo no Teatro Pedro Ivo.
Embora tenha me provocado uma emoção estética muito positiva, que é uma bela forma de dizer que gostei, não vou falar sobre o espetáculo em si. Afinal não sou crítico de arte, seja que arte for.

Quero falar sobre o que vi do lado de cá da ribalta. Se havia trinta pessoas na platéia era muito. Trinta. Um espetáculo daquele porte com tão pouco público. O teatro é longe? A divulgação é falha? Talvez sim. Mas qual o motivo de tão pouca gente comparecer? Talvez seja de gerações se criarem na frente da tevê. Há pelo menos quarenta anos temo nosso lazer portátil, filtrado pela tela da tevê.

Se fosse um bonitão de algum programa global, estaria lotado. Mesmo que seu currículo artístico nada mais dissesse que a criatura é ex-BBB. Mesmo que ele nem conseguisse pronunciar algo como currículo artístico sem tropeçar nos erres e nos tes.

Mas ali, naquela noite no Teatro Pedro Ivo não havia nenhum global. Havia seis excelentes artistas no palco. Falaram, declamaram, cantaram, tocaram e dançaram para deleite de apenas trinta almas. Cinco na platéia para cada um no palco. Além do oco das poltronas vazias, apenas trinta saíram melhor do que entraram ali.

Eu tive o privilégio de seguir o conselho do grande Marquinhos e ir ver. Outras quatrocentas mil pessoas não. Acho que certo estava eu.

UM BIGUÁ

Nem só de gaivotas vive a Praia do Itaguaçú. Embora invisível para a maioria dos humanos que passa por lá apressada ou desligada, ali no mar acontecem cenas dignas de serem vistas, assim como na beira aparecem pedras dignas de serem exploradas.

Mas vamos ao mar. Um biguá aponta sua cabeça escura no mar. O pescoço longo sustenta o bico erguido. Nele, um peixe insiste em se manter vivo. Raio de prata se movendo vigorosamente.

Ao contrário das gaivotas e outras aves marinhas, o biguá não mergulha do ar para apanhar suas presas. Ele fica boiando, com o bico apontado para cima e os olhos vasculhando a água. Assim que encontra algo que lhe interessa, mergulha da superfície mesmo e nada pelo fundo do mar, buscando seu alimento.

O peixe, coitado do peixe, trava uma luta inglória contra o bico do biguá que lhe parece imenso. Luta, enquanto o pássaro o mantém apenas preso.

Num determinado momento, sentindo as forças do peixe se esvaírem, a ave, em poucos movimentos com o pescoço, direciona o peixe com a cabeça para dentro de sua boca e glup! completa sua refeição.

Depois toma um banho, limpando o corpo com o bico e sacudindo alegremente as penas. Minha vó sempre dizia para não tomar banho de barriga cheia porque eu podia ter uma congestã, como ela falava. Eu nunca tive uma congestã ao tomar banho após uma refeição. Muito menos o biguá. Este, aliás, nem devia ter uma vó lhe dando conselhos. Mergulha. Some no fundo da água atrás de algum outro peixinho.

A cena, já sem o biguá, é dominada por duas traineiras brancas e lentas a cruzar a baía. Seguem em fila quase na linha do horizonte. Cortam a faixa verde do mangue da Ressacada, que separa o mar do céu com suas brancuras. Passam pelos morros do sul da ilha rumo algum futuro cardume para encher as redes.

Nestes mares cada um provê o seu sustento de sua maneira. Para infelicidade geral dos peixes e moluscos.

08 setembro 2009

COMPANHIA

Em dois níveis as gaivotas estão acompanhadas. Aliás, em diversos, mas no momento me interesso por dois.

No mais próximo há hoje uma parceria na pedra do ninho. A gaivota continua no choco, mas há uma outra ave fora do ninho, sobre a pedra, bem próxima. Uma ave de corpo e cabeça pardos e anel branco no pescoço. Talvez um filhote? Creio que não. Parece ser um martim-pescador. A proporção entre a cabeça e o corpo é diferente da de uma gaivota e parece muito emplumado para ser um filhote recém nascido. Sim, pois ontem passei pelo Itaguaçú e estava só a gaivota no choco. Muito emplumado o pássaro, se bem que hoje não dá para falarmos em pássaros emplumados sem outras conotações.

Chega outra gaivota e a ave voa. Um martim-pescador, sem dúvida. Deu para ver bem o bico e o jeito de voar. Porém, num instante, chega outra gaivota, espantando a primeira. Agora sim chegou a companheira do ninho.

O martim-pescador pousa numa pedra próxima. Afinal, ele só está querendo uns peixinhos. A primeira gaivota voa para longe, estava querendo talvez os ovos. Já a nossa gaivota, após enxotar o intruso, voa para outra pedra, também próxima e fica ali aguardando a troca de turno.

Isto me faz lembrar os tempos de caserna, onde havia troca de turno entre os sentinelas e quando estava se aproximando a hora da troca da guarda, ficávamos no alojamento parados, esperando render os outros. Assim como acontece com estas penosas.

Em outro nível – voltando ao início da crônica, havia dois níveis – outras das bruxas empedradas do Itaguaçú ganham vida em ninhos de gaivotas. As que ficam em terra já têm sua vida em cabeleiras dreads. dos cactos rainha da noite. As que ficam na beira da praia também exibem suas vidas em cabelos ralos de liquens. Entretanto as que estão no mar agora estão a receber os louros de ninhos junto com a dádiva de viver. Nem que seja por algum tempo. Nem que seja até os filhotes alçarem vôo. Porém os ninhos permanecerão até se decomporem pelo tempo, varridos pelo cruel vento sul e sua chuvarada invernal. Ou, pelo contrário, serão habitados por outros animais ou crescerá alguma orquídea, cuja semente foi carregada por uma das gaivotas presa na palha da praia. Na palha da praia que surge trazida pelo mar, vinda dos costões e depositada polidamente na praia. E assim assistimos o poderoso momento das bruxas se envidando. Deixando sua conotação pétrea para ser algo mais. Ser um pequeno ecossistema onde a vida se faz. A vida.

Este orixá que nos faz compartilhar algo com as gaivotas, as árvores, a própria paisagem. Centelhas orgânicas da natureza.